domingo, 19 de agosto de 2012

O país sem juízo



"Brasil = o direito não funciona, a esquerda não funciona, o 
meio é funcionário, quem tá embaixo é lixo e quem 
tá em cima tá se lixando." 
(O chinelo da minhoca) 


- Senhor Juiz, eu pequei.
- Não tema, minha criança. O Senhor Juiz é misericordioso. Diga-me o que fizeste.
- Roubei um banco.
- Qual banco?
- Do Brasil.
- De qual Estado?
- Pernambuco.
- Lindas praias. Está arrependido, meu filho?
- Muito. O plano foi mal executado e meu bando inteiro foi localizado e preso.
- E o dinheiro?
- Consegui esconder uma parte. A polícia não vai conseguir tirá-lo de mim.
- Eu entendo. Estamos vivendo tempos difíceis e ninguém quer abrir mão de dinheiro. Reze dois “Pais Nossos” e fique quatro anos na cadeia enquanto seu dinheiro rende.
- Obrigado, Juiz. 
- Senhor Juiz, me ajude pois eu errei.
- Prossiga, minha filha.
- Com a ajuda do meu namorado, matei meus próprios pais por motivos fúteis. E errei em acreditar que ele não me entregaria para a polícia.
- Está arrependida?
- Não. Mas meu advogado disse que se eu fingisse estar a pena seria mais branda.
- Ele estava certo. A justiça está do lado dos dissimulados. Reze três “Ave Marias” e pegue nove anos de reclusão em regime fechado, sabendo que no final dos dois primeiros você obterá uma progressão de pena que irá lhe dar direito de passar os finais de semana em casa com seus pais, digo, com seus familiares que você ainda não matou.
- Ainda...
- O que disse?
- Nada.
- Muito bem. Vá em paz.
- Obrigado, Senhor Juiz.
- Senhor Juiz, estamos sendo injustiçados.
- No Brasil? Como isso é possível, meus filhos?
- Estão nos acusando do assassinato de nossa filha. Mas somos inocentes.
- Qual é o álibi de vocês.
- Não temos.
- E existe algum outro suspeito de ter cometido o assassinato?
- Sim. Suspeitamos de um ser maligno que habita os esgotos das grandes metrópoles. Lemos na internet que ele tem poderes sobrenaturais, que permitem que possa invadir prédios em áreas de intenso movimento sem ser notado, sem deixar marcas, pegadas, digitais ou qualquer outro sinal que o incrimine. Sua especialidade é atirar garotinhas indefesas pela janela e produzir vestígios que levem à prisão indevida dos pais das pobres coitadas. O senhor não vai acreditar, mas ele ainda foi capaz de imitar a voz de um de nossos filhos gritando “Não, papai! Não mate a minha irmã!”
- Meu filho. Sinto que vocês não estão sendo honestos comigo. Terei que sentenciá-los a vinte anos de reclusão.
- Tudo bem. Eu confesso. Matamos ela de forma cruel, por motivo torpe e sem lhe dar nenhuma chance de defesa.
- Parabéns. A justiça sabe recompensar os réus confessos. Sua pena será reduzida para quinze anos em regime fechado. Providenciaremos uma cela só para vocês, para que os outros presos não os linchem.
- Seu Juiz, a gente vacilou.
- Como assim, meus filhos.
- Roubamos um carro e acabamos arrastando um garotinho que ficou preso no cinto de segurança. Ele não resistiu e acabou morrendo.
- Absurdo! Vocês pegarão a pena máxima! Serão excomungados e suas almas arderão no inferno! O país ficará mais tranquilo sabendo que bandidos da sua laia estão apodrecendo em uma cela fétida e apertada! Eu mesmo usarei um ferro em brasa para...
- Mas Senhor Juiz, nós somos de menor.
- Nesse caso, estão todos liberados. Naquela salinha ali tem guaraná e alguns biscoitos. E quero que me prometam que não farão mais traquinagens deste tipo, ouviram bem? Ai, ai, ai! (mostrando o chinelo, paternalmente).
- Ouvimos. Valeu, Seu Juiz.
- Essas crianças...
- Carlão, digo, Senhor Juiz, estamos sendo embaraçosamente acusados de participar de um engenhoso esquema de captação e divisão de verbas indevidas.
- Todos vocês?
- Sim. A acusação tem diversas provas incontestáveis em vídeo, gravações telefônicas, testemunhas, extratos bancários, entre outros. Isso é um absurdo. Tantos políticos que já fizeram coisa pior e ninguém ficou sabendo e agora que é nossa vez de dar uma mamadinha todo mundo descobre? Sacanagem...
- Essa é a primeira vez que vocês se envolvem em atividades ilícitas com o objetivo de acumular fortunas com dinheiro público?
- É claro que não. Já somos políticos há vários anos.
- Então não se preocupem que irei pessoalmente rever esse processo e garantir que a justiça prevaleça. Pelo explicitado aqui, creio que vocês podem requerer o benefício de direito adquirido, já que exercem essa atividade de maneira sistemática desde os primórdios de seus mandatos. Vou permitir que respondam em liberdade para que possam conversar com as testemunhas e convencê-las da sua inocência. Um abraço e não esqueçam que é aniversário da Shirley no sábado.
- Caro colega, veja a que ponto chegamos...
- O quê é isso nos seus pulsos? São... algemas?
- Foi horrível. Dois policiais federais me algemaram no meio da rua, na frente de toda aquela gente. Nunca me senti tão humilhado...
- E o que você fez?
- Atropelei e matei algumas pessoas após uma noite de cachaçada, mas isso não importa. Veja como elas estão apertadas! Acho que uma delas está me arranhando.
- Não chore, amigo. Não descansarei até que o Supremo proíba o uso de algemas, os policiais que te prenderam sejam exonerados e que você seja aposentado recebendo salário integral. E não se esqueça: “bem aventurados somos, pois temos direito a foro privilegiado e cela especial”.

Autoria: O chinelo da minhoca
Charge: chargesbruno.blogspot.com

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Coleção fábulas modernas - volume 2


A SAGA DE ZEA MAYS

Ele nasceu numa terra estranha, insólita. Cresceu sem nenhuma orientação. Ninguém que pudesse lhe dar carinho, atenção. Desde cedo aprendeu a ser forte, pois de nada adiantava chorar. Seu lar era um local apertado, quente, escuro. Ele simplesmente não conseguia ver nada. Às vezes escutava ruídos ao seu redor, e um dia compreendeu que não estava sozinho naquele lugar sombrio. Havia outros como ele. Muitos outros. Mas não podiam sequer falar uns com os outros. Ninguém sabia falar. Existência silenciosa...
Um dia, acordou assustado. O chão estava tremendo. Sentiu que algo estava errado. Ouviu um barulho distante, que aos poucos foi aumentando até se tornar ensurdecedor. Ten-tou se mover, mas não conseguiu. De repente, sentiu um forte impacto, como se sua casa tivesse sido arrancada do chão e atirada em um despenhadeiro. E o barulho continuava, e o chão não parava de tremer. Após longos 20 minutos, abruptamente, tudo ficou silencioso. Mas desta vez o silêncio trazia medo e insegurança. Súbito, ele sentiu que sua casa se movia novamente. Sentiu novo impacto, dessa vez um pouco mais forte, e acabou desmaiando...