quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

CALMA, CALMA


Quando o despertador tocar, acorde devagar, com calma, sem estresse. Não jogue o aparelho na parede. O barulho dele é chato, mas você tem que se controlar. Isso. Levante-se e tome uma ducha bem morninha e relaxante. A água está gelada? Não! Não faça isso! De que adianta arrancar a cortininha do box? Tudo tem uma explicação lógica. Olhe se a chave do chuveiro está no desligado. Não está? Então deve estar queimado. Fazer o quê? Depois você compra um novo. Calma. Aposto que você está nervoso porque se lembrou que não tem dinheiro para comprar um novo. É difícil aceitar isso, eu sei. Mas deixa pra lá. Vista-se e vá para o trabalho. Vai tomar café primeiro? Mas o café acabou, não se lembra? E também o leite e o queijo. AH! Sabe aquele iogurte de ameixa que você comprou na promoção ontem? Venceu antes de ontem. Engraçado, né? Algumas pessoas dariam risada ao perceber esse tipo de... Ei! Ei! Esse pão está mofado. Não se atreva a comer isso. Não se atrev... Tudo bem. O estômago é seu. E vai logo vestir uma cueca, que eu não agüento mais ver essa hérnia balançando aí embaixo. Se você ainda tivesse aquele plano de saúde poderia operar essa coisa. Foi uma pena ter perdido o direito ao plano quando foi despedido daquela empresa. Mas agora esquece isso e veste logo a cueca. Espera aí. Essa não. Você estava com ela ontem. Veste uma nova. Ou então uma limpa... Ótimo! Resolveu me ignorar, né? Vestiu a cueca fedorenta. Tá bom. Termina logo de se arrumar. E não fique nervoso com o cinto. Ele não tem culpa de você ter engordado tanto. Lembre-se de contar até dez. Já contou? Conta devagar. Conta até 30, então. Que coisa! E não esquece de pentear o cabelo. Ali atrás tá arrepiado. Não, mais atrás. Joga um pouco de água. Ainda tá arrepiado. Passa gel. Mais um pouco. Caramba! Coloca um boné! Só por uns dois minutos, pro cabelo abaixar. Vamos embora antes que se atrase.
Hoje vai ser um ótimo dia no trabalho. Você vai contribuir muito para a sociedade. Lembre-se das palavras do Dalai Lama: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”. Estufe o peito. Barriga pra dentro. Epa! Olha só. É impressão minha, ou seu carro está com o pneu murcho? Não. Tá é furado mesmo. Mas tudo bem, porque hoje vai ser um lindo dia e... Pára com isso! Se ficar batendo a cabeça na parede vai acabar se machucando. Controle-se. Vamos trocar o pneu. Isso. Muita calma nessa hora. Viu? Prontinho. Apenas um pequeno atraso, de 56 minutos. Que azar. Mas não é motivo para pânico. Você pode dar uma boa explicação para o chefe. Dirija com cuidado. Seja prudente. Ele te fechou, mas aposto que foi sem querer. Opa! Arrancaram seu retrovisor. Agora o outro. Esses motoqueiros... Sempre apressados, não é mesmo? Epa. Eu conheço esse olhar. Não faz isso. Para de gritar. Que boca suja. Não xinga a mãe de ninguém. Não fecha aquele carro. Eu falei pra não fechar ele. Agora chega! Volta pra dentro do carro. Não. Você não vai pegar o taco de madeira no porta-malas. Viu? Agora vai ter problema com a polícia. Faça qualquer coisa, menos desacatar o oficial. Muito bem. Explique tudo direitinho. Agora pegue a multa e entre calmamente no carro. Harmonia e cabeça fria. Muito bem. Tira esse sorrisinho de psicopata do rosto. Você está me assustando. Diminui a velocidade. Diminui! Aaahhh! Puxa! Ainda bem que a bateria arriou. E já estamos pertinho do trabalho. Olha o chefe ali te esperando. Vai dar tudo certo. Basta dizer a verdade. “O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros”. Não escutou o que eu disse? Deixe de ser um homem comum e assuma a culpa. Que falta de vergonha. O que sua mãe diria se visse você mentindo desse jeito? E agora? Pronto. Foi despedido de novo. Mas veja pelo lado bom. Pelo menos você não precisa ficar naquele escritório apertado neste dia tão bonito e ensolarado. Eu disse ensolarado? Eu quis dizer nublado. Se é que está chuviscando um pouco... Você está bem? Vamos para casa antes que a chuva aumente. Tarde demais... Mas quer saber? Um pouco de televisão vai te distrair. Tente manter a cabeça no lugar. Tudo vai dar certo. Por que você não toma um banho quente para relaxar? Quer dizer, não abre a torneira! Esqueceu que o chuveiro está queim... Olha que eu tentei te avisar. Ei! Tira esse sabonete da boca! Ficou maluco, é? Pára com isso! Desenrola essa toalha do pescoço. Você está ficando roxo. Pára! Desce dessa janela! Tente se acalmar. Concentração. Pensamentos felizes. Não pula! Não... Eu falei para não pular. Esqueceu que você mora no primeiro andar? Conseguiu quebrar os dois pés, mas e daí? Você é jovem e as fraturas consolidam muito rapidamente. Nada que dois meses de repouso não resolvam. Tire o celular do bolso e ligue para a ambulância do convênio. Ah, é mesmo. Você já não tem mais convênio. Na verdade você também nem tem mais celular. Pois bem, aproveite seu pulmão ainda viável, apesar dos maços de cigarro, e dê um grito. Talvez alguém apareça para ajudar. Ninguém? Rua deserta em pleno meio dia? Não se preocupe. Concentre-se. Lembre-se que há um telefone público a menos de três quadras daí. Vamos, arraste-se. Mãos puxam antebraços, que puxam braços, que erguem ombros, que tracionam o tronco, que chamam os joelhos, que... Aaaaiii! Um dos joelhos tá bichado. Não tem problema, use só o joelho bom. Não se arraste perto demais do meio-fio. Vamos. Fique mais no meio do passeio. Vamos, vamos... Caminhão, poça d´água. Ficou todo molhado, né? Eu avisei. Mas isso não deve ser motivo de desespero. Você não queria tomar um banho mesmo? Até que a água estava morninha. Limpe o rosto. Para quê essa cara de dor? São só dois pés quebrados e um joelho bichado. Você é muito mais do que isso. Veja que sorte. Uma velhinha passando do seu lado. Chame-a. Ah, ela não escuta direito. Grite-a. Ah, ela é surda. Pegue alguma coisa e jogue nela para chamar sua atenção. Não! O relógio não foi uma boa idéia. Mas, tudo bem. A velhinha já viu você. O quê? Saiu andando com seu relógio? Apesar de lenta, você não consegue alcançá-la arrastando-se? Deixa pra lá. Para quê você vai precisar de relógio agora? Olha aí o telefone público. A menos de cinqüenta metros. Olha que coisa boa. Alguém está usando. Assim que vir você todo molhado, sujo, ensanguentado e se arrastando, logicamente oferecerá ajuda. Ainda mais por se tratar de um homem aparentemente distinto, de mala, terno e gravata. Viu, ele já olhou para o seu lado. Aproxime-se. Mas não faça tanta cara de dor. Você o está assustando. Ele está com medo. Acha que você é um mendigo. Sorria, quebre um pouco essa imagem. Calma, calma. Ele te chutou e saiu correndo? Sociedade perversa. Mas não desanime. Isso acontece a qualquer um todos os dias. Recupere-se. O quê? Você acha que ele quebrou sua costela? Pulmão perfurado? Sem pânico, talvez um pneumotórax, mas você tem dois pulmões, lembra? Como assim, mais ou menos? Ah, esqueci dos dois maços de cigarro que você fuma diariamente. Paciência. Agora é uma boa hora para você parar de fumar. Está vendo como a vida é cheia de oportunidades? Basta que vejamos os sinais. Acho que você não está prestando atenção no que estou dizendo. Cuidado com os sinais. Saia do meio da rua. O sinal já está vermelho para pedestres. Não consegue? Role, engatinhe, está sem força? Use a língua, sei lá, mas saia daí! Puxa vida! Ai, ai, atropelamento. Veja como está com sorte. Era só uma motocicleta. Uma motoneta, bem pequena. Que sorte! Tudo bem que quem pilotava era uma dessas pessoas com indicação formal de cirurgia de redução de estômago, mas passou tão rápido, não é? Além do mais, passou por sua cabeça, que é a parte mais dura do seu corpo. Muita sorte. Ei, você não me escuta mais? Não, não fique tremendo assim, vão achar que você está tendo uma convulsão no meio da rua. Um momento. Pode ser mesmo uma convulsão! Nossa! Outro atropelamento. Ai, dessa vez um caminhão. Bom, pelo menos a convulsão parou. Será que morreu? Bom, se bem que era isso que você queria quando pulou do seu apartamento. Está vendo, às vezes os caminhos são tortuosos, mas com determinação sempre alcançamos os nossos objetivos. 

Autoria: O chinelo da minhoca (com ajuda do amigo André, pediatra bacana)

2 comentários:

  1. Estou encantado, ja fazia um tempo que nao via uma narracao desse genero. Se me lembro bem, fora de um antigo cartoon que eu conhecera.

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