terça-feira, 22 de janeiro de 2013

SOBRE ESCOCESES E DUENDES




O velho escocês era muito conhecido naquela pequena cidade. Sua figura chamava a atenção. Apesar da idade avançada, era um homem forte e media quase dois metros de altura. Seus cabelos eram tão ruivos que lembravam um arbusto em chamas. Seus olhos azuis reluziam, por mais que as marcas da idade teimassem em tentar escondê-los entre as inúmeras rugas de seu rosto. Porém, a beleza não era exatamente o seu forte. Vivia explicando para os amigos que o rubor escarlate de suas bochechas e o nariz robusto e hipertrofiado eram a marca registrada de seu clã. O velho insistia em culpar um certo feiticeiro que, numa noite fria das ermas encostas das highlands, lançou uma maldição sobre seu tataravô, que à partir de então passou a carregar em sua feição a mais bruta das feiuras. E essa sina seria passada de geração em geração até que fosse desfeita por uma façanha heroica. Um ato de puro desprendimento e bravura. O dermatologista do velho insistia em dizer que não se tratava de maldição, e sim de uma doença chamada rosácea, cujo tratamento envolveria a suspensão das noites de bebedeira. O velho quase asfixiou o pobre médico, que mais tarde ficaria sabendo que na Escócia costumavam apedrejar bruxos, ingleses e dermatologistas defensores da abstinência alcoólica.
A bebida era tudo na vida daquele velho. Desde a mais tenra juventude aprendeu a tratar a cerveja e o uísque como membros da família e base da pirâmide alimentar. Os torneios de levantamento de caneco e esvaziamento de barril foram as suas principais fontes de renda por vários anos. Foi dono de alambiques, cultivou plantações de malte, gerenciou bares e, durante alguns meses em que visitou a Irlanda, trabalhou como degustador de coquetéis Molotov para o IRA.  Hoje, aposentado e morando no interior do Paraná, tudo que o interessava eram as noites de boemia, onde deleitava os presentes com seu bom humor e histórias de bravura do povo escocês.
Porém, certa vez, sonhou com uma fada que dizia conhecer a maneira de quebrar a maldição da família.

            - Terás que desafiar a si mesmo em uma batalha de vida ou morte – disse-lhe a fada.  
- Mas como? – indagou o velho.
- Beberás como nunca feito antes pelos humanos. O álcool deverá ser ingerido até que seu estômago se afogue, seu fígado lacrimeje e seu pâncreas peça pinico. Ele se afeiçoará com seu interior, tornando-se parte pulsante do seu organismo. Sua alma estará então protegida contra as forças da escuridão. Munido de coragem e proteção, você deverá enfrentar um perigoso duende que habita o vilarejo. Ele esconde consigo a beleza facial que há tantos anos foi roubada de seu clã.
O velho acordou e passou o dia ruminando sobre aquele estranho sonho. Sonho ou realmente um aviso? Teria chegado o momento da libertação? As horas se passaram. Seu rosto começou a brilhar como os relâmpagos. O escocês rasgou e arrancou a calça e a cueca com um só movimento do braço. Vestiu o kilt de seu pai e partiu para a batalha.
            O dono do bar estava assustado. Nunca tinha visto um homem beber tantas garrafas de cerveja. O velho não comia nada. Apenas pedia mais uma, mais outra e mais, mais, sem parar.
- Não está adiantando! Essa cerveja está muito suave! Tragam-me algo mais forte! – gritou o velho.
O dono do bar obedeceu e trouxe um vinho tinto.
- Esse vinho está muito mimoso! Chega de carícias! Desejo ser desafiado por algo mais congruente!
O dono não sabia o significado de congruente, então tratou de trazer rapidamente uma garrafa de vodca.
- Esta vodca está deveras educativa, sendo necessário que me sirvam de imediato um digestivo alcoólico com gradação mais digna da minha patente! – vociferou o velho, já sentindo que um escudo de proteção mágica crescia em seu interior. Ou seria a sua bexiga comprimindo os demais órgãos abdominais?
- Quer que traga um uísque? – indagou o assustado dono.
- Creio que não será páreo para meus hepatócitos amestrados nas frígidas geleiras do norte. Aceitarei com a condição de que seja misturado com cachaça e pólvora de mosquete e temperado com pimenta de mandruvá-chorão das encostas do Chipre. Traga logo e saia da frente.
            O incansável escocês sorveu tudo numa só golada, assustando as mulheres que observavam pela janela do estabelecimento.
- Bebidinha franzina que só molestaria afeminados e velhas freiras. Não basta para amortecer-me! – berrou o velho, com o rosto cada vez mais vermelho e os olhos cada vez mais brilhantes. – Espero que tenha algo mais viril, pois estou ficando agressivo e impaciente.
            Todos se entreolharam. O velho estava alterado de tal forma que ninguém se atreveria a censurá-lo ou tentaria dissuadi-lo a parar com aquela maluquice. Um dos empregados se lembrou de uma velha garrafa de absinto que se encontrava esquecida em um baú de madeira. Encheu a caneca e a entregou ao escocês. Ele torceu o nariz.
- Bebida verde. Coisa ridícula – balbuciou antes de virar a caneca de uma só vez, como se estivesse bebendo leite morno.
- Mais forte que isso só o combustível do meu opala – gritou um engraçadinho que se escondia atrás das escadas.
- E o que esperam? Tragam logo, pois esse suco de abacate que me serviram não presta. Exijo ser realmente testado! – berrava e fungava, com irreconhecível agressividade, enquanto batia o punho sobre a mesa. 
            Todos estavam com medo, mas ao mesmo tempo curiosos. Ninguém se atreveu a buscar a bebida.
- Minha fama de baderneiro não surgiu por acaso. Onde está o que pedi? – gritava e cuspia o velho.
Seu nariz parecia ainda maior que de costume. Seus olhos quase não apareciam, espremidos que estavam naquele rosto rubro e brilhante. Apesar de sempre se gabar da sua fama de baderneiro, nunca havia brigado com ninguém da cidade. O velho se levantou e começou a empurrar tudo e todos que estavam na sua frente. Sua determinação era imensa, assim como sua falta de equilíbrio. Após trombar com meia dúzia de mesas, dezessete cadeiras e vinte e três homens, alcançou a porta.
No momento em que a abriu deu de cara com um duende, que trajava roupas verdes e exóticas. O velho não hesitou, pois já esperava este confronto e estava munido de proteção divina da cabeça aos pés. Balançou a mão esquerda e lascou um murro na orelha do duende com a mão direita (conhecia as artimanhas do boxe). Esbofeteou a criatura por mais duas ou três vezes, enquanto a platéia tentava impedi-lo, segurando-o. Percebeu que o duende não era páreo para ele, pois parecia assustado e chorava como uma criança. Isso apenas aumentou a sua vontade de recuperar sua beleza. A honra de toda uma família. A dor e a vergonha começavam a desaparecer. Percebeu que o duende segurava uma pequena caixa que emitia luzes estranhas. Tomou para si a caixa. Só podia ser a beleza roubada. Conseguiu se desvencilhar da multidão e começou a correr para casa.
Precisava contar para a esposa que a maldição havia sido quebrada. Atravessou velozmente a estrada de terra e a praça da cidade, passando pela pequena igreja. Sua cabeça estava leve e sua mente parecia flutuar. Apesar de seu estado de total embriaguez, conseguia sentir tudo que ocorria a sua volta. O mundo estava mais colorido. O céu parecia mais alegre. As estrelas piscavam para ele. Sentiu-se um verdadeiro galanteador. Estava feliz por ter vencido aquele desafio. Agora só precisava achar o caminho de casa em meio a todos aqueles seres fantásticos que estava vendo. Dragões, fadas e feiticeiros desfilavam na sua frente. Desviou de alguns monstros que surgiram pelo caminho e pediu a ajuda das amigas fadas para atravessar o rio de uísque que molhava os seus pés. As fadas sorriram e estenderam a mão. O velho saltou feliz ao encontro delas.
            No dia seguinte, todos lamentavam a sorte do velho escocês. Sua viúva era consolada pelos amigos, que se sentiam culpados pelo trágico desfecho.
- Não devíamos tê-lo deixado ir. A noite estava muito escura – lamentavam alguns homens presentes.
O caixão foi mantido fechado. Cochichos diziam que o velho já era feio antes de se afogar e que agora devia estar muito pior. Era feio, mas tinha bom coração. Todos entendiam a vontade do velho em desfazer a maldição, mas nunca entenderiam o porquê daquele senhor que parecia tão correto ter agredido covardemente um indefeso rapaz que estava simplesmente procurando o endereço de uma festa a fantasias.
A polícia considerou o caso como agressão seguida de roubo, e disse que talvez o velho tenha roubado o GPS do garoto para ajudá-lo a encontrar o caminho de casa, pois estaria bêbado demais para se orientar sozinho. Infelizmente, por não saber operar o aparelho, teria se perdido e caído no rio. Um agente funerário perguntou se o corpo seria cremado. Por um instante todos se lembraram da noite de fúria alcoólica do escocês e acharam melhor apenas enterrá-lo. Seria mais seguro para toda a cidade.

Autoria = O chinelo da minhoca
Foto = cena do filme "Darby O'Gill and the little people"


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