O velho escocês era muito conhecido naquela pequena cidade. Sua figura
chamava a atenção. Apesar da idade avançada, era um homem forte e media quase
dois metros de altura. Seus cabelos eram tão ruivos que lembravam um arbusto em
chamas. Seus olhos azuis reluziam, por mais que as marcas da idade teimassem em
tentar escondê-los entre as inúmeras rugas de seu rosto. Porém, a beleza não
era exatamente o seu forte. Vivia explicando para os amigos que o rubor
escarlate de suas bochechas e o nariz robusto e hipertrofiado eram a marca
registrada de seu clã. O velho insistia em culpar um certo feiticeiro que, numa
noite fria das ermas encostas das highlands,
lançou uma maldição sobre seu tataravô, que à partir de então passou a carregar
em sua feição a mais bruta das feiuras. E essa sina seria passada de geração em
geração até que fosse desfeita por uma façanha heroica. Um ato de puro
desprendimento e bravura. O dermatologista do velho insistia em dizer que não
se tratava de maldição, e sim de uma doença chamada rosácea, cujo tratamento
envolveria a suspensão das noites de bebedeira. O velho quase asfixiou o pobre
médico, que mais tarde ficaria sabendo que na Escócia costumavam apedrejar
bruxos, ingleses e dermatologistas defensores da abstinência alcoólica.
A bebida era tudo na vida daquele velho. Desde a mais tenra juventude
aprendeu a tratar a cerveja e o uísque como membros da família e base da
pirâmide alimentar. Os torneios de levantamento de caneco e esvaziamento de
barril foram as suas principais fontes de renda por vários anos. Foi dono de
alambiques, cultivou plantações de malte, gerenciou bares e, durante alguns
meses em que visitou a Irlanda, trabalhou como degustador de coquetéis Molotov
para o IRA. Hoje, aposentado e morando
no interior do Paraná, tudo que o interessava eram as noites de boemia, onde
deleitava os presentes com seu bom humor e histórias de bravura do povo
escocês.
Porém, certa vez, sonhou com uma fada que dizia conhecer a maneira de
quebrar a maldição da família.
- Terás que desafiar a si mesmo em uma batalha de vida ou morte – disse-lhe a fada.
- Mas como? – indagou o velho.
- Beberás como nunca feito antes pelos humanos. O álcool deverá ser
ingerido até que seu estômago se afogue, seu fígado lacrimeje e seu pâncreas
peça pinico. Ele se afeiçoará com seu interior, tornando-se parte pulsante do
seu organismo. Sua alma estará então protegida contra as forças da escuridão.
Munido de coragem e proteção, você deverá enfrentar um perigoso duende que
habita o vilarejo. Ele esconde consigo a beleza facial que há tantos anos foi
roubada de seu clã.
O velho acordou e passou o dia ruminando sobre aquele estranho sonho.
Sonho ou realmente um aviso? Teria chegado o momento da libertação? As horas se
passaram. Seu rosto começou a brilhar como os relâmpagos. O escocês rasgou e
arrancou a calça e a cueca com um só movimento do braço. Vestiu o kilt de seu
pai e partiu para a batalha.
O dono do bar estava assustado.
Nunca tinha visto um homem beber tantas garrafas de cerveja. O velho não comia
nada. Apenas pedia mais uma, mais outra e mais, mais, sem parar.
- Não está adiantando! Essa cerveja está muito suave! Tragam-me algo mais
forte! – gritou o velho.
O dono do bar obedeceu e trouxe um vinho tinto.
- Esse vinho está muito mimoso! Chega de carícias! Desejo ser desafiado
por algo mais congruente!
O dono não sabia o significado de congruente, então tratou de trazer
rapidamente uma garrafa de vodca.
- Esta vodca está deveras educativa, sendo necessário que me sirvam de
imediato um digestivo alcoólico com gradação mais digna da minha patente! –
vociferou o velho, já sentindo que um escudo de proteção mágica crescia em seu
interior. Ou seria a sua bexiga comprimindo os demais órgãos abdominais?
- Quer que traga um uísque? – indagou o assustado dono.
- Creio que não será páreo para meus hepatócitos amestrados nas frígidas
geleiras do norte. Aceitarei com a condição de que seja misturado com cachaça e
pólvora de mosquete e temperado com pimenta de mandruvá-chorão das encostas do
Chipre. Traga logo e saia da frente.
O incansável escocês sorveu tudo
numa só golada, assustando as mulheres que observavam pela janela do
estabelecimento.
- Bebidinha franzina que só molestaria afeminados e velhas freiras. Não
basta para amortecer-me! – berrou o velho, com o rosto cada vez mais vermelho e
os olhos cada vez mais brilhantes. – Espero que tenha algo mais viril, pois
estou ficando agressivo e impaciente.
Todos se entreolharam. O velho
estava alterado de tal forma que ninguém se atreveria a censurá-lo ou tentaria
dissuadi-lo a parar com aquela maluquice. Um dos empregados se lembrou de uma
velha garrafa de absinto que se encontrava esquecida em um baú de madeira.
Encheu a caneca e a entregou ao escocês. Ele torceu o nariz.
- Bebida verde. Coisa ridícula – balbuciou antes de virar a caneca de uma
só vez, como se estivesse bebendo leite morno.
- Mais forte que isso só o combustível do meu opala – gritou um
engraçadinho que se escondia atrás das escadas.
- E o que esperam? Tragam logo, pois esse suco de abacate que me serviram
não presta. Exijo ser realmente testado! – berrava e fungava, com
irreconhecível agressividade, enquanto batia o punho sobre a mesa.
Todos estavam com medo, mas ao mesmo
tempo curiosos. Ninguém se atreveu a buscar a bebida.
- Minha fama de baderneiro não surgiu por acaso. Onde está o que pedi? –
gritava e cuspia o velho.
Seu nariz parecia ainda maior que de costume. Seus olhos quase não
apareciam, espremidos que estavam naquele rosto rubro e brilhante. Apesar de
sempre se gabar da sua fama de baderneiro, nunca havia brigado com ninguém da
cidade. O velho se levantou e começou a empurrar tudo e todos que estavam na
sua frente. Sua determinação era imensa, assim como sua falta de equilíbrio.
Após trombar com meia dúzia de mesas, dezessete cadeiras e vinte e três homens,
alcançou a porta.
No momento em que a abriu deu de cara com um duende, que trajava roupas
verdes e exóticas. O velho não hesitou, pois já esperava este confronto e
estava munido de proteção divina da cabeça aos pés. Balançou a mão esquerda e
lascou um murro na orelha do duende com a mão direita (conhecia as artimanhas
do boxe). Esbofeteou a criatura por mais duas ou três vezes, enquanto a platéia
tentava impedi-lo, segurando-o. Percebeu que o duende não era páreo para ele,
pois parecia assustado e chorava como uma criança. Isso apenas aumentou a sua
vontade de recuperar sua beleza. A honra de toda uma família. A dor e a
vergonha começavam a desaparecer. Percebeu que o duende segurava uma pequena
caixa que emitia luzes estranhas. Tomou para si a caixa. Só podia ser a beleza
roubada. Conseguiu se desvencilhar da multidão e começou a correr para casa.
Precisava contar para a esposa que a maldição havia sido quebrada. Atravessou
velozmente a estrada de terra e a praça da cidade, passando pela pequena
igreja. Sua cabeça estava leve e sua mente parecia flutuar. Apesar de seu
estado de total embriaguez, conseguia sentir tudo que ocorria a sua volta. O
mundo estava mais colorido. O céu parecia mais alegre. As estrelas piscavam
para ele. Sentiu-se um verdadeiro galanteador. Estava feliz por ter vencido
aquele desafio. Agora só precisava achar o caminho de casa em meio a todos
aqueles seres fantásticos que estava vendo. Dragões, fadas e feiticeiros
desfilavam na sua frente. Desviou de alguns monstros que surgiram pelo caminho
e pediu a ajuda das amigas fadas para atravessar o rio de uísque que molhava os
seus pés. As fadas sorriram e estenderam a mão. O velho saltou feliz ao encontro
delas.
No dia seguinte, todos lamentavam a
sorte do velho escocês. Sua viúva era consolada pelos amigos, que se sentiam
culpados pelo trágico desfecho.
- Não devíamos tê-lo deixado ir. A noite estava muito escura – lamentavam
alguns homens presentes.
O caixão foi mantido fechado. Cochichos diziam que o velho já era feio
antes de se afogar e que agora devia estar muito pior. Era feio, mas tinha bom
coração. Todos entendiam a vontade do velho em desfazer a maldição, mas nunca
entenderiam o porquê daquele senhor que parecia tão correto ter agredido
covardemente um indefeso rapaz que estava simplesmente procurando o endereço de
uma festa a fantasias.
A polícia considerou o caso como agressão seguida de roubo, e disse que
talvez o velho tenha roubado o GPS do garoto para ajudá-lo a encontrar o
caminho de casa, pois estaria bêbado demais para se orientar sozinho.
Infelizmente, por não saber operar o aparelho, teria se perdido e caído no rio.
Um agente funerário perguntou se o corpo seria cremado. Por um instante todos
se lembraram da noite de fúria alcoólica do escocês e acharam melhor apenas
enterrá-lo. Seria mais seguro para toda a cidade.
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