A aula de patologia era entediante. O professor mostrava intermináveis slides sobre células tumorais no fígado. Na verdade, eu não estava olhando para as fotos, e sim para a lista de chamada que passava vagarosamente de mão em mão. Eu ansiava pelo momento mágico em que finalmente assinaria aquele papel. E então, liberdade! Não precisaria ficar naquele inferno, pois meu compromisso para com a universidade estaria saldado. Meu nome era a prova cabal de que estive presente. Estaria livre para desfrutar de uma partidinha de truco com os amigos. Simples e direto. Talvez a vida se resumisse em uma grande sala de aula, onde todos aguardam pela lista de chamada do sucesso. Isso mesmo. Quem coloca o nome nela resolve todos os seus problemas. E alguns chegam a tê-la em suas mãos, mas não podem assinar por falta de caneta. Perdem a oportunidade. Outros conseguem uma emprestada, mas então precisam assinar o nome dessa outra pessoa e compartilhar a conquista. Felizardo é o que pode assinar com sua própria caneta...
- Estamos agora sobrevoando o Atlântico.
Era a aeromoça do 747 que, com sua voz melodiosa, me libertava dos braços de Morfeu e acabava com meu sonho nostálgico e reflexivo.
- Se olharem pela janela, poderão apreciar esse lindo oceano.
Decidi dar uma olhadinha. Abri os olhos e virei o rosto para a esquerda, mas para meu espanto, tudo que consegui ver foi uma grande escuridão. Fiquei cego!!! Estava prestes a entrar em pânico, mas felizmente percebi o motivo da minha deficiência visual. Ainda estava usando aqueles ridículos óculos para dormir, que a companhia aérea coloca na segunda classe para que todos durmam rápido e esqueçam de reclamar da comida. Retirei-os e finalmente observei a paisagem. Bonita, mas nada especial para quem está acostumado a viajar para a Europa. O mesmo bom e velho oceano, o céu azul que parecia se misturar às águas, as nuvens brancas de formas e tamanhos variados, os pássaros, a fumaça acinzentada saindo da asa, o piloto descendo suavemente de pára-quedas, o co-piloto caindo rapidamente sem o pára-quedas...
- Ai, meu Deus! Nós vamos morrer!
A anarquia tomou conta do avião. Era uma gritaria sem igual. Clamores aflitos ribombavam pelos corredores. A aeromoça, desesperada, pegou o microfone e perguntou se alguém poderia tomar algum tipo de providência, já que a aeronave estava voando às cegas.
- Eu sou piloto! – gritou um senhor de cabelos grisalhos e olhar sério.
- De avião? – indagou a jovem.
- Não. De submarino. – debochou o homem em tom cínico.
- Então fique por perto. Vai que o avião cai no mar e afunda e...
O homem interrompeu o raciocínio beócio da aeromoça e explicou que havia servido à aeronáutica. Aquilo tranquilizou a todos. Talvez ele pudesse nos ajudar. Todos se sentaram e ficaram esperando pela salvação. Fechei os olhos e fiquei pensando na minha vida, minha casa, meus parentes. Um casal de velhinhos sentado ao meu lado me lembrou meus pais. Minha mãe, que Deus a tenha, morreu com um sorriso estranho no rosto dois dias depois que meu pai foi internado no hospício. Antes disso, meu pai passava os dias correndo pelado pela casa. Ele gostava de se pendurar no lustre e falar que era o Tarzan. Aqueles eram tempos difíceis, porém felizes... Comecei a relembrar os momentos marcantes da minha mocidade. No primeiro dia de aula do meu curso de medicina o reitor me olhou nos olhos e disse: “Filho, você vai ser um péssimo médico!”. É claro que eu estava todo sujo de tinta e enfiado dentro de uma grande lata de lixo, cortesia daqueles veteranos idiotas. Os anos se passaram e eu fui adquirindo mais confiança. No quarto ano, o reitor já me tratava com mais respeito, quase admiração. “Filho, até que você leva jeito como médico, mas faça o favor de sair dessa lata de lixo”. Eu realmente odiava aqueles malditos veteranos... Quando me formei (e fiquei livre dos veteranos), o reitor me ofereceu uma oportunidade de especialização no exterior. Eu fiquei muito feliz e aceitei a proposta, pensando que agora tudo mudaria para melhor. E foi assim que embarquei nessa canoa furada com destino ao fundo do Atlântico...
Súbito, ouvimos um grito vindo da cabine. A aeromoça surgiu completamente pálida. O avião começou a tremer. Perguntei o que havia acontecido e ela começou a explicar.
- Aquele senhor conseguiu estabilizar a nave. Aí ele fechou o tanque de combustível da asa esquerda e o fogo apagou. Então eu sorri para ele e falei: “Ainda bem. Agora só falta desativar a bomba”.
- O quê? Tem uma bomba no avião? – gritaram todos.
Nova confusão. Pessoas corriam apavoradas. Crianças choravam em estrídulos histéricos. Eu também chorava. E a aeromoça nos interrompeu.
- Não tem bomba nenhuma. Eu estava só brincando com ele. – explicou.
- Então tudo bem! – suspirou uma senhora.
- Tudo bem nada! Ele achou que eu estava falando sério e pulou fora.
- Sem pára-quedas? – perguntei.
- E de ponta!
- Puxa! Corajoso! Até lembro de uma vez que...
- Calem a boca e façam alguma coisa! – interromperam os outros passageiros em uníssono.
E mais uma vez o desespero se espalhou pelo avião. E eu fiquei ali pensando. “Faça alguma coisa!”. Mas fazer o quê? Ajudar? Claro que ajudo! Quando o avião cair eu posso cuidar dos feridos. “Doutor! Vem cá dar uma olhada na minha perna!” E eu digo: “Já estou olhando. Ela caiu aqui do meu lado”.
E a aeromoça começou a me puxar em direção à cabine, talvez achando que eu fosse algum herói de filmes de ação. Chegando lá ela mandou que eu me sentasse e entrasse em contato com a torre de comando. Fiquei perplexo.
- E você? Não vai fazer nada? – perguntei.
- Vou fazer café para acalmar os passageiros.
- Coloquei os fones de ouvido e liguei o rádio. Comecei a falar todos aqueles termos de aviação que já vi no cinema. Então, uma voz respondeu.
- Aqui é a torre. Por favor, repita a mensagem.
Expliquei que não era o piloto e que estávamos desgovernados. Então me perguntaram qual era a minha posição.
- Sentado. – respondi.
- Me diga a sua rota! Olhe os números no painel! – gritou o homem, demonstrando não ter gostado nem um pouco do meu sofrível senso de humor.
- Calma. Estou procurando. São muitos números.
Após alguns instantes, consegui localizar os dados corretos.
- Muito bem. Vocês estão no radar. Existe uma ilha com aeroporto a apenas 300 quilômetros . Como está o combustível?
- A luzinha está acesa.
- Ai, meu Deus...
Levantei-me rapidamente. Não precisava ser um gênio para perceber que estávamos condenados. Encontrei a aeromoça e pedi para que mostrasse onde ficava o kit de emergência. Ela me levou até o fundo da aeronave e comecei a procurar por algo que pudesse ser útil. Um bote salva-vidas, um foguete sinalizador, uma bíblia, qualquer coisa. Uma mochila verde me chamou a atenção. Havia algo escrito nela: “Atenção co-piloto! Mantenha sempre ao seu alcance! Sua vida pode depender disso!”.
- O pára-quedas! – gritei entusiasmado.
Coloquei-o nas costas, amarrei bem firme e abri a porta de emergência. O avião já havia perdido muita altitude. O tempo estava se esgotando. Olhei para baixo e vi que estávamos sobrevoando uma pequena ilha. Me preparei para saltar. Peguei impulso e... Tive a impressão de que aquilo não estava certo. Eu não podia sair daquele jeito. Antes deveria saldar meu compromisso para com aquelas pessoas. Mas de que maneira?
A aeromoça retornou e sentiu um vento forte e frio. Percebeu então que a porta de emergência estava aberta.
- Moço! O senhor está bem? – gritou.
Não ouvindo resposta, ela se aproximou da porta. Olhou para baixo e viu um ponto vermelho que descia suavemente. Ao lado da moça havia uma pequena inscrição gravada na fuselagem. Era a assinatura do homem. E sobre seu nome estava escrito “lista de chamada”.
Autoria: O chinelo da minhoca
Foto: internet
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