quinta-feira, 17 de maio de 2012

RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE?



Brasil. Ano de 2023. Nos últimos anos, a sociedade começou a se sentir ameaçada diante da abertura indiscriminada de centenas de faculdades de medicina, a multiplicação de cursinhos de picaretagem médica de final de semana e a popularização de empresas de medicina do trabalho que contratavam estudantes ao invés de médicos formados. Como resposta, a classe médica foi bombardeada por inúmeras denúncias e ações judiciais. Os processos eram tantos que acabaram motivando os advogados a prestar serviços especializados. Hoje em dia, nenhum paciente vai ao consultório médico sem o seu próprio advogado a tiracolo. E os médicos também começaram a se precaver, e contrataram advogados para orientá-los durante as consultas. Com isso, a relação médico-paciente se transformou em uma relação “advogado-médico-paciente-advogado”, e vários juízes foram convocados para colocar ordem no tribunal, ou melhor, na consulta.
- Todos de pé. Presidindo agora, o excelentíssimo Juiz Andrade Vilela.
- Todos assentados. Declaro aberta a consulta.
- Bom dia, Dona Maria.
- Protesto. A doutora está partindo do pressuposto que toda paciente do SUS se chama “Dona Maria”. Artigo 128, inciso 14, parágrafo 3: estigmatização da paciente.
- Protesto aceito. A paciente deverá se identificar. Qual é o seu nome, Dona Maria? Quero dizer, qual é o nome da senhora?
- É Dona Maria mesmo.
- E qual é o seu problema, Dona Maria?
- Protesto. A doutora está insinuando que a minha cliente é problemática.
- Protesto aceito. A doutora deverá reformular a pergunta.
A médica discute com sua advogada para encontrar a melhor maneira de abordar a paciente.
- A bondosa senhora poderia nos relatar, por obséquio, qual o motivo da sua presença mais do que bem vinda ao meu humilde e respeitado consultório, honesto e autorizado pela prefeitura e pela Vigilância Sanitária?

A advogada da médica mostra os alvarás, confirmando a afirmação da doutora.
- Pois é, doutora. É que eu ainda estou tossindo muito. E agora estou com uma dorzinha aqui, ó (aponta para as costas).
- Nas costas?
- É. Nas costas.
- Protesto, meritíssimo! Ela está claramente induzindo a resposta da minha cliente.
- Protesto aceito. A queixa principal deverá ser registrada com as próprias palavras da paciente, ou seja, “dorzinha aqui, ó”.
- E a senhora tomou algum medicamento por conta própria para tentar tratar esta doença?
- A minha cliente não irá responder esta pergunta, pois ela não é obrigada a produzir provas contra si mesma.
- Bom, então agora precisamos analisar os exames. E aquele raio-x de tórax que eu pedi na semana passada? Ficou pronto?
- Ficou. Eu deixei com o rapazinho ali.
- Meirinho, leia o laudo.
- “Laudo de radiografia de tórax. Consolidação lobar à direita sugere pneumonia bacteriana. Eu não estou dizendo que a paciente tem pneumonia. Pode até ter, mas se tiver não é culpa minha. Quero lembrar a todos que a clínica é soberana. O resultado deste exame serve apenas para orientar o médico que o solicitou, pois ele é o responsável pelo paciente, e não eu. Não tenho nada a ver com isso. Pode até ter sido culpa do técnico que não soube colocar o paciente na posição correta. Em caso de dúvida, segue em anexo o telefone do meu advogado”.
- Protesto, excelência! A vigência de apenas um exame radiográfico não possibilita a concatenação dos sintomas com o diagnóstico de certeza. Não obstante, como preconizado na literatura médica disponível no google, vários exames importantes deveriam ter sido pedidos, como por exemplo, uma cintilografia óssea da bacia, uma capilaroscopia de leito ungueal e, no mínimo, uma dosagem de cloro na urina. E além disso...
A advogada da médica interrompe o colega.
- Meritíssimo. Contando com minha vasta experiência no assunto, já tomei a liberdade de pedir estes “vários exames” que, segundo a OAB, vieram normais. E aproveitei também para pedir esta tomografia que revelou a existência de um coração, um fígado e não um, mas dois pulmões.
O advogado se levanta para protestar e é reprimido pelo Juiz, que exclama:
- Não vamos nos exaltar! Provavelmente esse achado é decorrente de alguma variação anatômica.
- E, finalizando, a doutora pede permissão para realizar o exame físico, onde poderá confirmar estes achados.
O advogado da paciente se coloca no caminho da doutora.
- A senhora não se atreva! Eu tenho aqui em minhas mãos um mandado de segurança que impede que a doutora se aproxime da minha cliente. E tenho também esta procuração que me nomeia como representante legal da mesma, devendo o exame ser realizado nessa pessoa que vos fala.
O Juiz se levanta.
- Agora o senhor passou dos limites. Eu não vou tolerar este tipo de manobra evasiva. A doutora está autorizada a prosseguir com o exame físico.
- Obrigada, meritíssimo. Dona Maria, vou encostar o estetoscópio nas costas da senhora para auscultar os pulmões. Faça o favor de respirar com a boca aberta. Isso. Parece que está com algumas crepitações.
A médica chama a sua advogada e pede para que ela ausculte também.
- Concordo. Parecem estar podendo estar havendo crepitações (lembrando que o formato gramatical e o uso do gerúndio estão corretos, de acordo com a reforma ortográfica de 2018, que instituiu o dicionário advoguês-português, autorizado pela OAB, com aval do MEC, revisado pelo professor Luiz Inácio Mula da Silva).
- Por enquanto, sem objeções. Mas eu estou de olho na doutora.
- Agora dá uma tossida.
Dona Maria dá uma tossida bem fraquinha. O advogado sussurra algumas instruções no ouvido da paciente.
- Valoriza o sintoma, Dona Maria. Valoriza.
Dona Maria tosse como se estivesse engasgada com um pedaço de torresmo cabeludo.
- Nossa! Que tosse feia, Dona Maria. Agora eu vou fazer a ausculta cardíaca.
A médica enfia a mão com o estetoscópio debaixo da camisa da paciente. O advogado da paciente fica indignado.
- O quê é isso? A senhora está atacando sexualmente a pobre coitada! Não podemos confiar a saúde da minha cliente a esta depravada. Peço anulação da consulta, excelência.
- Esta acusação de violência sexual não procede, meritíssimo! Peço autorização para interrogar a minha cliente para provar a sua boa índole.
- Prossiga.
- Doutora Joana, não é verdade que a senhora trabalhou durante dois anos em um posto de saúde que pagava mal e ficava longe da sua residência, só para garantir um atendimento médico de qualidade para a população?
- Sim.
- E durante a faculdade você cursou disciplinas de enorme cunho social, como por exemplo, o internato rural?
- É verdade.
- Dou-me por satisfeita, meritíssimo. Acho que isso prova o caráter humano da minha cliente.
- Tudo bem. Irei concordar quanto ao caráter, mas a doutora pode nos garantir que possui os conhecimentos necessários para uma consulta confiável?
- Claro que sim. Tenho completa segurança em afirmar que o estado da paciente não é fisiológico, e sim patológico.
- Interessante. A senhora teve que estudar fisiologia e patologia para poder fazer esta afirmação, não é mesmo?
- Claro.
- E antes destas matérias, a senhora precisou ser aprovada em histologia, certo?
- Com certeza.
- Então, por favor...
O advogado exibe um slide na parede.
- ... nesta micrografia eletrônica, qual o nome da estrutura apontada pela seta? (aponta para uma "gap-junction")
A médica fica desnorteada e começa a gaguejar. A sua advogada intervém.
- Protesto!
- Protesto aceito. Existe uma jurisprudência do Supremo Tribunal que considera irrelevante a disciplina de histologia na formação médica. A doutora me parece perfeitamente capaz de dar prosseguimento à consulta. A senhora doutora já chegou a algum diagnóstico?
A médica discute por alguns instantes com sua representante.
- Sim, meritíssimo. Pneumonia.
- Meritíssimo. Esse diagnóstico nos pegou desprevenidos. Eu gostaria de pedir um recesso para avaliar estas evidências e, quem sabe, convocar algumas testemunhas. Ou pelo menos um outro médico para dar uma segunda opinião.
- Negado. Este tribunal considera a paciente portadora de pneumonia. Meirinho, leia a receita.
- “A paciente deverá ser mantida em regime domiciliar semi-aberto, com direito a visitas, e receberá tratamento a base de amoxicilina via oral por 10 dias, ou 7 dias se apresentar bom comportamento.”
- Dona Maria, não se preocupe. Nós vamos recorrer desse diagnóstico... 


* Encenado no Show Medicina, pelo Grupo Teatral Acadêmicos Amestrados da UFMG (autoria da ideia original = Adão; texto final com contribuição de vários amigos do show)
** As opiniões e piadinhas contidas neste texto são fictícias e dizem respeito a fatos fictícios que ocorrerão num futuro próximo (ou não). Se algum leitor se sentir ofendido, favor entrar em contato com o advogado do nosso blog, que ainda não foi contratado por estarmos passando por um período turbulento da economia. Se você ficou tão ofendido que não consegue esperar para nos processar, deixaremos o número da nossa conta bancária para que você faça uma doação em dinheiro que usaremos para contratar um advogado (ou para fugir do país, sei lá).
*** A OAB e o MEC não participaram, não apoiaram, não se manifestaram, nem ficaram sabendo que foram citados e provavelmente não ligam a mínima para o que escrevemos aqui, mas já avisamos que em caso de processo nós vamos ficar muito magoados, e talvez iremos até chorar um pouquinho e ficar de mal por uma semana. 

Um comentário:

  1. Nossa!! huahuahuahua...demais!!!! Estou vendo a hora que a doutora aqui vai atender assim mesmo!!!

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