sábado, 24 de março de 2012

Quem salvará a pele da dermatologia?

Triste realidade atual no Brasil: os dermatologistas "de verdade" estão se tornando minoria. Na verdade acho que até poderia afirmar que os especialistas "de verdade" estão se tornando (ou irão se tornar) minoria em várias especialidades, e não só na dermatologia. Apenas para situar o leitor = quando eu digo "de verdade", entre aspas, estou me referindo ao médico que tem título de especialista registrado no conselho de medicina, o que o habilita a bater no peito e urrar sua especialidade por aí sem correr riscos de levar um pito dos conselhos regionais de medicina. Vale lembrar que não fui eu que criei essa “verdade” (que fique claro para os pitizentos e seus departamentos jurídicos que esse é o entendimento do Conselho Federal de Medicina, desde que este afirma que apenas o médico com especialidade registrada pode se afirmar especialista), e nem estou querendo dizer que todos os outros seriam “de mentira” (apesar de acreditar que grande parte está brincando de andar na montanha russa das especialidades médicas).
Tudo esclarecido, continuemos então falando da dermatologia, que me parece ser o principal alvo da triste realidade citada anteriormente. Atualmente existem os "de verdade" e os "não reconhecidos como especialistas por não possuírem título ou por não ter regularizado sua situação perante o seu conselho regional e que, dessa forma, estão agindo em desacordo ao código de ética médica quando se afirmam ou se fazem entender como sendo especialistas em dermatologia" (legal esse negócio de colocar aspas - minha assessoria jurídica me ensinou). Sei que corro o risco de ofender pessoas do segundo grupo, então deixo a opção de substituírem, se isso lhes apetece, a expressão "de verdade" pela expressão "dermatologista", e a segunda definição entre aspas pode ser substituída por "não-dermatologista segundo o conselho de medicina" ou "estou tentando me tornar dermatologista, mas ainda não o sou" ou “sou dermatologista mas estou sem tempo para registrar o meu título” ou qualquer outra variação que signifique qualquer coisa menos dermatologista, pois assim regem as normas éticas do nosso conselho. 
Deixando de lado as delongas juridicamente necessárias quando se escreve um manifesto em que existe grande risco de se pisar em calos, retorno então ao tema principal. Quando a Chapeuzinho resolve encurtar o caminho até a casa da vovó, pegando atalhos pela floresta, ela corre o risco de ser abordada pelos lobos maus, que irão provavelmente tomar o seu dinheiro e guloseimas, deixando a pobre criança com sua cesta vazia, sem nada a oferecer que satisfaça a fome da pobre vovozinha (traduzindo para quem não entende muito de fábulas, moral da história ou metáforas: o médico que quer encurtar o caminho para o título de especialista, seguindo por caminhos não tradicionais, obscuros, repletos de falsas promessas, corre o enorme risco de gastar dinheiro para aprender de uma forma abaixo da ideal, e quando chegar ao consultório não terá muito o que oferecer ao paciente que o procura ansioso por um tratamento satisfatório). Existe um caminho na medicina que leva à um nível de conhecimento inquestionável, que é o aprendizado supervisionado em regime de dedicação exclusiva. Quando a supervisão e/ou a dedicação são insuficientes, o médico pode ter sua formação comprometida, dificultando a sua aprovação em provas de título de especialista ou o preparando de forma inadequada para o mercado de trabalho. Por isso o conselho foi categórico ao declarar em seus pilares éticos que o especialista deve ter sua condição comprovada pelo registro do título, coisa que não é todo mundo que consegue alcançar. Mas isso não é empecilho em um país fraco em termos de fiscalização como o Brasil. Aqui quem tem dinheiro consegue o que quer de um jeito ou de outro. Os médicos que não chegam a se tornar especialistas, mas que agem como tal, ignorando os preceitos éticos da classe, estão se multiplicando e se infiltrando em todos os níveis da nossa sociedade, acobertados pela já tradicional impunidade que mancha nossa desacreditada justiça.  E afirmar que se é especialista sem de fato o ser está se tornando tão comum que já existem entidades paralelas que se declaram como sendo "sociedades (ou academias) que possuem suas sedes no mesmo quarteirão onde funciona uma padaria que vende uma revista que veicula um anúncio de um curso pré-vestibular direcionado para alunos que querem ingressar em uma faculdade reconhecida por um certo ministério (que nem vou falar qual é porque tenho medo de ficar com cáries só de expor minha boca a um nome de reputação atual tão desgastada)" ou, para encurtar, "sociedades reconhecidas pelo beque". Percebam que a palavra "beque" está apenas funcionando como alegoria fonética, já que foi explicado anteriormente que não citaria o nome do tal ministério que reconhece ou autoriza a abertura de qualquer boteco que lhe ofereça desconto no chopp. 
Porém, voltemos ao discurso principal, já que estou inclinado a me perder em devaneios e estratégias de desvio de balas perdidas. Como dizia anteriormente a situação está complicada, pois estão surgindo profissionais de formação altamente duvidosa, com riscos para a sociedade que dorme despreocupada. A inocente sociedade não percebe o risco que corre e nem que este risco tende a crescer exponencialmente em um futuro próximo. E, além dos profissionais espertões, tem mais gente achando tudo isso ótimo: as indústrias farmacêuticas já perceberam que só tem a ganhar patrocinando profissionais que se encaixam no que eu chamo de "dark side" da medicina, que seria o segmento médico que se preocupa em alcançar altos patamares de respaldo e remuneração no menor tempo possível e independente do custo financeiro ou ético que isso possa acarretar, se esgueirando pelas brechas do sistema e exigindo os mesmos direitos sem ter que cumprir os mesmos deveres. Laboratórios que se diziam dedicados à dermatologia agora se dedicam a qualquer coisa que comece com derma ou med e termine com logia ou estética, etc. Algumas empresas investem pesado em certos grupos de médicos interessados em dermatologia, pois eles são uma presa fácil, por não possuírem conhecimento suficiente para avaliar de forma crítica o que lhes é anunciado (ex: qualquer creminho de gosma de caracol passa a ter local de destaque no arsenal lamacêutico dessa turminha que acredita em creme pra celulite, disco voador e cursinhos de final de semana), aceitam mais facilmente os acordos de "parceria" remunerada (até porque o exemplar do código de ética médica desse povo deve estar escrito em polonês e servindo de calço para o pé da mesa) e provavelmente já contam com mais membros que a única sociedade de dermatologia que é filiada à Associação Médica Brasileira. A dermatologia está deixando de ser especialidade e está virando assunto, cursinho, hobby, comércio, clubinho, até mesmo subespecialidade de quem não é especialista em nada. Nosso futuro como pacientes acometidos por perebas, birrugas e outras ziquiziras infelizmente parece incerto, pois os dermatologistas devidamente registrados crescem em ritmo muito mais lento que os sem registro, além do fato que os profissionais éticos se tornam ofuscados pelos que reivindicam publicamente em todos os meios de comunicação a autoria de seus milagres (contrariando o código de ética que condena as atitudes de autopromoção sensacionalistas)  e que sofrem apenas uma vez ou outra alguma punição que mais parece tapinha na mão e dormir sem sobremesa. Isso sem nem citar o fato de que algumas categorias profissionais fora da medicina resolveram se aproveitar da demora da aprovação da Lei do Ato Médico para praticarem atos que até pouco tempo atrás eram realizados apenas por médicos (é uma terceira categoria, que irei classificar de forma não oficial como "não reconhecidos como especialistas em dermatologia, pois deveriam estar presos por prática ilegal da medicina pra começo de conversa" ou como "camarada que consegue ser mais cara de pau que o Pinóquio quando acha que é só colocar a palavra "estética" no final do nome do curso para se habilitar a fazer o que lhe der na telha e que só não dou uma na cara dele porque abomino a violência e tenho alergia a óleo de peroba"). É muito triste mesmo, e não só para a dermatologia, talvez a maior vítima depois do paciente, mas para toda a medicina. Parece que em algum momento do passado a figura do especialista confiável sofreu uma ruptura múltipla de órgãos, do tipo que nem dá pra estancar o sangramento, e agora a observamos no CTI, com o abdome cheio de compressas, fazendo apenas o controle de danos e rezando para que ela não evolua para o óbito. Me desculpem a revolta. Tenho acompanhado de perto as dificuldades das sociedades sérias de especialistas e até estou vendo com gosto que muito tem sido feito para proteger a medicina em geral, mas principalmente a dermatologia. O problema é que também vejo muita coisa errada surgindo em ritmos frenéticos, o que me dá a impressão que para cada boa notícia surgem logo três ou quatro ruins. Atualmente as boas sociedades estão dependendo tanto dos departamentos jurídicos para tentar corrigir o que está errado, que tenho receio que uma hora eles percebam a grande brecha na nossa legislação e criem a advocacia estética, o conselho de estética do senado, o código de estética médica ou qualquer outra variação de estética utilizada como sufixo e/ou pretexto para mais um golpe de picareta no peito da medicina que um dia jurou frases rebuscadas sob a sombra de Hipócrates. Encerro meu desabafo pedindo desculpas aos colegas de bem que podem ter se assustado com minhas previsões apocalípticas no melhor estilo "2012". Também peço desculpas aos colegas que se sentirão ofendidos a ponto de querer sair da floresta e seguir novamente pela estrada (lembram da metáfora da Chapeuzinho?). Aos colegas que habitam as profundezas do "dark side", apenas desejo que esse texto possa ser uma luz para os pacientes que ainda dormem despreocupados. 
* Em tempo = esse texto não foi autorizado pelo "beque", mas não pelo seu conteúdo, e sim pela falta de dinheiro do autor. 

Autoria = O chinelo da minhoca

4 comentários:

  1. Parabéns pelo seu texto! Tudo muito bem colocado! Apenas eu acho que, neste caso, O Chapeuzinho Vermelho pode ser o próprio paciente, que desconhece as credenciais dos seus médicos. Novamente parabéns pelo texto! Preocupações de todos: médicos e pacientes!

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  2. Perfeito!!!É difícil ser especialista hj em dia e ter que conviver com esse monte de "fake" na Dermato!

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  3. Texto interessantíssimo e tão pessimista quanto eu também tenho me sentido! Mas sabe que tanto pessimismo me faz pensar que um dia nós, dermatologistas devidamente credenciados, seremos tão raros quanto cavaleiros Jedi, ao ponto de nem conseguirmos nos encontrar e nos mantermos unidos como grupo. Ou seremos esquecidos em algum tipo de exílio ou seremos caçados para sermos eliminados, pois seremos indesejados pelo grupo dominante de falsos-especialistas que desejarão nossa extinção, para poderem, sem ter o conhecimento necessário para assumir nosso posto, assumirem pela inexistência de seus verdadeiros ocupantes

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  4. Maria Mira Kairuz Bordin28 de março de 2012 às 00:08

    não sou médica,mas concordo plenamente com o artigo.Há muita picaretagem na dermatologia.

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