sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

UM ESTRANHO NA LAPÔNIA


Nosso herói abriu os olhos lentamente. Sua cabeça estava pesada. Sentiu suas têmporas pulsarem como se nelas existisse um segundo coração. Fitou as paredes de madeira da velha cabana, tentando reconhecer o ambiente. Sabia que não estava em sua casa. Ao mesmo tempo em que se levantava cambaleante, procurava em sua memória alguma pista do que poderia estar acontecendo. Onde estava? Como chegou ali? Tudo parecia distante. Encontrou um espelho no banheiro e se examinou por alguns segundos. Olhos vermelhos, boca seca e amarga, memória prejudicada, tonteira, dor de cabeça, cheiro de álcool em suas roupas. Sentiu um leve desconforto nas costas. Levou a mão sobre a nádega direita e sentiu dores no local. Percebeu que sua camisa estava suja de sangue.
- Roubaram meu rim! – pensou, aflito.
Tirou rapidamente as roupas e se virou para o espelho, já vendo as notícias no jornal: “Mais uma vítima da lenda urbana”. Para sua surpresa, o que viu foi uma grande tatuagem recente, onde se lia: “Jennifer”. Esvaziou os bolsos e encontrou uma aliança com o mesmo nome escrito e algumas fichas de 100 dólares, com a marca do Caesars Palace de Las Vegas. Lentamente, os fatos começaram a fazer sentido...
Rudolph estava com sorte naquela noite. Sua pilha de fichas estava cada vez maior. Era a primeira vez que conseguia fazer um straight flush e um four no mesmo jogo. Já estavam jogando há várias horas e todos estavam completamente embriagados. Num determinado momento, os jogadores começaram a lançar desafios.
- Duvido que você dá um tapa naquele segurança!
- Eu te desafio a subir na roleta e tirar a camisa!
- Aposto que você não tem coragem de se casar com a primeira prostituta que aparecer, tatuar o nome dela nas costas e saltar de pára-quedas sobre a Finlândia!
Rudolph, “o lenhador”. Este era o seu nome. E sua honra e coragem o impediam de fugir dos desafios. Ele poderia simplesmente ter subido na roleta ou aplicado um catiripapo no segurança, mas seus instintos lhe diziam que não seria o bastante. Afinal, era dele a liderança da mesa. O gradiente alcoólico em seu sangue era todo o estímulo que ele precisava. Agora todos conheceriam o homem das fichas, o rei do castelo, “o lenhador”. Nada mais justo que aceitar o maior dos desafios...
Abriu a porta da cabana. Tudo estava escuro. O chão estava coberto de neve. A temperatura era baixíssima. Talvez não mais que 20 graus negativos. No horizonte, acima de um bosque repleto de pinheiros, uma claridade esverdeada se pronunciava. Rudolph vestiu algumas roupas que encontrou no armário. Ao lado da cabana, meia dúzia de cães huskies dormia ao relento. Rudolph improvisou um trenó com alguns móveis de madeira e assoviou. Curiosamente, nenhum deles sequer moveu as orelhas. O lenhador percebeu que deviam atender a comandos verbais.
- Junto! Pronto! Aqui! – gritou.
E nenhum deles reagiu. Claro que deviam responder a comandos em finlandês. Então Rudolph resolveu gastar todo o repertório que já havia lido naquelas revistas masculinas dos concursos de biquíni da Finlândia. Abriu o cercado dos cães e gritou com bastante energia.
- Kiitos! Näkemiin! Hyvää matkaa! Rasvaus!
Os cachorros se levantaram e, por um instante, ficaram emocionados ao ouvir os gritos de “Obrigado”, “Adeus”, “Boa Viagem”. Mas, ao ouvirem a palavra “Lubrificação”, ficaram confusos e correram o mais rápido possível para longe dali. Desanimado, Rudolph se ajoelhou na neve e ficou olhando para as luzes do céu, com vários tons esverdeados. Sabia pouco da Finlândia, mas ouvira falar que no inverno, por causa da inclinação da Terra, as noites poderiam durar três longos meses. Não resistiria muito tempo sozinho...
- Rudolph! Rudolph!
O lenhador ouviu gritarem o seu nome. Quem seria? Estaria salvo afinal? Avistou um senhor de idade andando apressado por entre os pinheiros. Correu ao seu encontro. 
- Olá! O senhor me conhece? Não achei que minha fama chegaria tão ao norte do planeta.
O rosto vermelho do velho tomou uma expressão de surpresa. Começou a falar rapidamente em finlandês. Rudolph não conseguia entender nada. Usando um pouco de mímica e algumas onomatopéias, conseguiu explicar que estava perdido e precisando de ajuda. O velho então pediu que ele o seguisse. Andaram por alguns minutos entre as árvores. O senhor continuava gritando o nome de Rudolph. De repente, alguns arbustos começaram a se mover. Algo se aproximava. O lenhador se armou com um galho seco, temendo o ataque de alguma fera. Talvez um lobo. Súbito, um animal parecido com um veado saltou na sua frente.
- Rudolph! – gritou o velho, ao mesmo tempo em que se abraçava ao animal.
O lenhador entendeu que tinha o mesmo nome daquele pequeno mamífero de nariz vermelho. Continuaram andando por alguns minutos e chegaram a um lugar muito iluminado. E Rudolph finalmente conseguiu visualizar com clareza o seu salvador. Era um velho barrigudo, de barba e cabelos brancos como a neve. Seu rosto era brilhante e gentil. Usava uma roupa vermelha, que chamou muito a atenção de Rudolph. O velhinho levou o nosso herói até uma grande construção, que mais parecia uma fábrica. Lá dentro, várias pessoas trabalhavam a plenos pulmões. Rudolph ficou chocado ao perceber que todos os trabalhadores eram pequenos. Pareciam crianças, com pequenos chapéus pontudos e roupas coloridas. Estavam fazendo brinquedos. Tudo aquilo era confuso demais para aquele modesto lenhador. O que estaria acontecendo? Por que diabos alguém manteria uma fábrica em um lugar tão ermo? E onde estariam os outros adultos? Em seguida o velho mostrou uma sessão cheia de cartas. Parecia uma agência dos correios. Sem que seu anfitrião percebesse, pegou algumas delas. Eram cartas escritas em diversos idiomas. E pareciam escritas por crianças. Algumas continham desenhos com arco-íris e corações. Rudolph começou a ficar irritado. Aquilo não parecia certo. Continuou seguindo o velhinho de roupa vermelha até um pátio enorme, onde havia um grande trenó. Vários veados estavam atrelados, imóveis. O velho colocou o veado de nariz vermelho a frente dos demais. Em seguida, pegou um grande saco vermelho e o colocou na parte de trás do trenó. Então, olhando para o lenhador, subiu no trenó e fez um movimento com o braço, chamando-o para junto de si. E deu uma tremenda gargalhada: - Ho! Ho! Ho!
De repente, tudo fez sentido para Rudolph. Finalmente entendeu o que estava acontecendo naquele lugar tão estranho. Ficou enojado. Não imaginou que poderia presenciar tamanha crueldade. Aquele velhinho de aspecto bondoso quase o enganou. Do mesmo modo que havia enganado e aprisionado todas aquelas crianças. Já tinha ouvido falar desse tipo de crime. Adultos entram em sites de bate-papo na internet e seduzem crianças desavisadas com falsas promessas de amizade. Percebeu o que eram as cartas. O velho trocava correspondência com as pobres crianças e devia prometer e, quem sabe, até enviar, presentes, brinquedos, talvez dinheiro. Poderia até enviar a passagem de avião para que a criança fosse ao seu encontro. E elas nunca mais voltariam para seus pais. Terminariam escravizadas, fabricando mais presentes que seriam mandados para mais crianças, num círculo vicioso interminável e doentio. E no final ainda chamava suas vítimas para passear no seu trenó maldito, sentadas ao seu lado, inocentes, até um lugar qualquer onde com certeza aquele perverso aliciador iria tirar uma mordaça e alguns instrumentos de tortura de dentro do grande saco vermelho. Os olhos de Rudolph se encheram de ódio justiceiro. Agarrou o velho barrigudo pelo pescoço e o jogou no chão. O bandido se debatia e gritava. Rudolph o arrastou pela barba até o interior da fábrica. Para seu espanto, as crianças começaram a atacá-lo, ao invés de se vingarem do seu raptor. Com certeza deviam estar sob algum tipo de lavagem cerebral ou poderiam estar sofrendo da Síndrome de Estocolmo. Rudolph se esquivou das crianças e correu para os fundos da fábrica. No caminho, encontrou uma pequena tocha. E foi então que decidiu destruir toda aquela construção demoníaca. As crianças correram espantadas ao ver as labaredas que o lenhador estava criando no depósito das cartas. O fogo se espalhou rapidamente. Rudolph olhou pela janela e viu que o velho estava correndo em direção ao trenó.
- Nada disso! Você não vai escapar! – pensou.
Desceu rapidamente as escadas da fábrica. Tentou ajudar algumas crianças que tentavam apagar o fogo, carregando-as para fora do prédio. Porém, elas lhe atacaram com pontapés e retornaram para o interior da construção. Quando chegou ao pátio, viu o velhinho brandir o chicote e gritar:
- Rudolph! Dasher! Dancer! Prancer! Vixen! Comet! Cupid! Donder! Blitzen!
Rudolph ficou ainda mais furioso.
- Além de tudo ainda tem coragem de me xingar nessa língua estranha! – gritou, ao mesmo tempo em que atirava a tocha dentro do saco vermelho.
O lenhador ficou observando enquanto o velho guiava o trenó em chamas através dos jardins congelados do pátio. De repente, teve a impressão de que o mesmo estava levantando vôo. Ficou confuso por alguns instantes e depois concluiu que o trenó devia ter subido numa pequena colina. E à medida que se afastava, o fogo ia aumentando, até que Rudolph viu o trenó desaparecer na escuridão. O som de um grande impacto foi ouvido em seguida. Naquele momento Rudolph sorriu, pois tinha certeza que à partir daquela noite todas as crianças do mundo dormiriam mais seguras e felizes.

Autoria - O Chinelo da Minhoca
Autoria do desenho - O Chinelo da Minhoca

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