quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Delírios psicanalíticos de uma noite de verão

"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados 
insanos por aqueles que não podiam escutar a música."
Friedrich Nietzsche

Era tarde da noite quando o doutor Evandro foi chamado para avaliar um paciente na ala psiquiátrica. O imenso prédio era mal iluminado e um tanto quanto assustador, mesmo quando bem iluminado pela luz do dia. Os corredores eram amplos e o mais leve ruído parecia ecoar pelas paredes descascadas de todo o andar. O médico foi levado ao encontro de um homem franzino e descabelado, que estava deitado completamente nu sobre uma pequena maca em um quarto isolado no final do corredor.
- Loucura. Tudo é louco. O planeta é louco, fica girando, translando, rotando sem parar. Rotando ou rodando? Não importa. O que importa é o sentido. Para a direita ou para a esquerda? – dizia o alucinado, falando de maneira rápida e quase ininterrupta, lembrando até uma locução de futebol pelo rádio. 
O doutor ficou observando o homem por alguns instantes antes de abordá-lo. Observava a postura estática, o olhar perdido, a voz rouca e anasalada. Alguns instantes se passaram e finalmente decidiu questioná-lo.
- Senhor Almeida. Sou o médico que está cuidando do seu caso. Podemos conversar um pouco? – disse de maneira educadíssima.
- Todos são loucos. Loucos por dinheiro, poder, ingressos para o show da Madonna. Querem tudo. Querem você. Mas você também é louco – continuou o homem sem ao menos mudar o tom de voz.
Doutor Evandro coçou a cabeça, já imaginando que aquela seria mais uma noite mal dormida. O médico pediu para a enfermeira trazer sua medicação e um copo de água. Também pediu que trouxesse a medicação do paciente. O paciente prosseguiu com seu discurso persecutório.
- Seu estômago está louco e fica tentando fazer com que se arrependa das coisas que comeu, bebeu. Sua consciência é alucinada. Seu juízo é duvidoso. Cuidado! Seus olhos vão tentar enganá-lo. Tudo a sua volta é um embuste. Não se esqueça disso. Esqueça! – gritava e ficava cada vez mais agitado.
O médico começou a ficar preocupado e sentiu que estava na hora de controlar a situação. Pegou o homem pelo braço e o levantou de forma firme, porém delicada. Olhou bem nos olhos do pobre diabo e o sacudiu levemente.
- Senhor Almeida. O senhor está no hospital e precisa de tratamento médico. Sente-se ali para que eu possa examiná-lo. Preciso que preste atenção – disse o médico com um tom de voz sério e autoritário.
O homem ficou imóvel e diminuiu um pouco a sua agitação. Virou o olhar em direção ao médico. Parou de falar e começou a sorrir. Parecia que estava voltando ao estado normal. Tomou fôlego e voltou a falar.
- Você precisa de ajuda – falou encarando o médico.
Dessa vez o seu tom de voz chegou a assustar o doutor. A enfermeira trouxe a medicação. O médico mandou que ela aplicasse um calmante no enfermo. Também aproveitou para tomar sua pílula. Não aceitou a água. Preferiu o whisky de um pequeno cantil de inox que trazia no bolso do jaleco. O paciente se aproximou do médico.
 - Você bebe para esquecer que fez alguma coisa e acaba fazendo outras que serão ainda mais difíceis de esquecer – disse com voz suave, conversando de uma maneira aparentemente normal.
O médico guardou o cantil e se sentiu um tanto envergonhado. Pensou que devia ter ficado com a água. 
- Desculpe-me, senhor Almeida. Venha. Vamos terminar logo esse exame. Está tarde e tenho que me levantar cedo amanhã para trabalhar – disse enquanto sentava o paciente na mesa de exames.
- Esqueça o trabalho – disse, pegando a mão do médico – Você fica trabalhando, dando um duro danado, sem receber nada de importante em troca. Você está sendo usado. Não sabe quando exatamente aconteceu, mas sabe que aconteceu.
O homem voltou ao seu estado inicial delirante. Estava ficando agitado novamente. Suas pernas abriam e fechavam. Cerrou os punhos. Parecia assustado.
– De repente você acorda e se descobre em um mundo hostil, onde tudo que parece estúpido é importante, e tudo que parece importante é estúpido. Lute homem! – gritou, agarrando violentamente o colarinho do doutor e chacoalhando o coitado.
- Patrícia! Preciso de ajuda! Onde está o Diazepam? – gritou doutor Evandro para a enfermeira.
O paciente não largava o médico e nem parava de gritar. O barulho acordou os poucos pacientes da enfermaria que ainda estavam dormindo. Alguns começaram a reclamar. A enfermeira gritou pedindo ajuda. Outros pacientes também começaram a gritar. 
- Lute contra o vândalo capitalista. Lute contra o sistema. Ouse mudar! Coloque silicone, não importa se nos seios, nos lábios ou no sanduíche. Pinte a casa de amarelo e o telhado de azul. Jogue água na mulher do vizinho – insistia o perturbado homem, que já estava quase estrangulando o médico.
A enfermeira e outros dois auxiliares seguraram o homem e ela aplicou a injeção de diazepam. O homem soltou o médico, que correu para fora do quarto e tentou recuperar o fôlego.
- Abrace o juiz que não deu aquele pênalti absurdamente claro. Jogue vídeo game, construa um castelo com o jogo de jantar que sua sogra lhe deu e o destrua com a bola de boliche do seu primo – dizia o paciente, agora com a voz menos agitada.
Por um instante, enquanto terminava de se acalmar, o médico prestou atenção nas palavras que eram proferidas pelo alucinado. Eram estranhas, mas de certo modo pareciam carregar um significado interessante, talvez até filosófico. Será que o paciente estaria falando diretamente para ele?
- Feche os olhos por um instante e relaxe. Esvazie sua mente. Perceba o silêncio tomar conta do ambiente. Enfrente os comunistas, derrube os muros, vá para a praça e entre no caminho de um tanque de guerra, amarre uma faixa na cabeça e atire flechas explosivas. Muito piegas? Então faça as coisas do seu jeito. Entre em um tanque de guerra, enfrente os muros, atire flechas explosivas no caminho e amarre uma faixa na cabeça dos comunistas. E a praça? Ela sempre será o seu refúgio... – falou o lunático, cada vez de forma mais tranquila.  
O doutor fechou os olhos e ficou ouvindo todas aquelas palavras, que agora o transportavam para um lugar relaxante, semi-consciente, entre as lembranças de sua juventude idealista e a realidade de uma vida regida por regras e obrigações maçantes. Sentia que seu corpo estava mais pesado.
- Assista ao “Mágico de Oz”, “Cantando na chuva”, “Quanto mais quente melhor”. Decore as músicas dos desenhos da Disney. Pinte o cabelo de verde. Faça uma tatuagem em um local inusitado – disse o senhor Almeida, de forma letárgica.
- Doutor, o senhor está bem? – perguntou a enfermeira.
- “Someday I wish upon a star...” – o doutor cantarolava baixinho, ainda com os olhos fechados.  
O paciente começou a ficar sonolento. Sua voz ficou trêmula e quase imperceptível. O médico foi lentamente saindo do seu estado semi-hipnótico. Entrou no quarto para tentar ouvir as palavras que ainda eram suspiradas pelo senhor Almeida.
- Coloque uma sirene no capô do carro, óculos escuros. Aponte o secador de cabelos para os bandidos. Goiabada não derruba governo – balbuciava o paciente.
- Acho que agora ele vai melhorar – disse a enfermeira.
- É uma pena – lamentou o médico, com o olhar perdido nas rachaduras das paredes.
O paciente finalmente dormiu. O silêncio invadiu a noite. O prédio voltou a se tornar arrepiante. O doutor voltou para o quarto de descanso dos médicos. O telefone do quarto tocou. Era a enfermeira.
- O doutor se esqueceu de prescrever a medicação para o paciente – disse a enfermeira com voz de sono.
- Não quero que lhe dê nada – disse o médico – Apenas me chame quando ele ficar agitado novamente.
- Acha que ele vai delirar novamente?
- Provavelmente. E quero estar por perto quando acontecer.
O médico jogou o resto do whisky na pia do banheiro. Entrou na internet e procurou a letra da música do Mágico de Oz.

Autoria: O chinelo da minhoca

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