Para alcançar o objetivo, devemos nos concentrar exclusivamente no fator tempo. Tempo é dinheiro. Se você quer realmente invocar a ira dos médicos, trate de gastar o seu precioso tempo. E isso já deve começar na marcação da consulta. O horário de marcação da sua consulta é muito importante e você tem várias opções interessantes. Marcando no primeiro horário, você tem a chance de engarrafar a agenda do dia inteiro, provocando um atraso que dificilmente será compensado. Marcando no final do dia, você corre o risco de encontrar um médico cansado, apresentando sinais de desidratação e alguns tiques nervosos. Se você é do tipo que gosta de dar o tiro de misericórdia, esse é o melhor momento, mas acontece que ele pode estar tão desgastado que não vai nem ligar muito se você desgraçar um pouco mais a sua vida. Uma vez que tenha decidido em relação ao horário, marque a consulta com antecedência, confirme um dia antes e, no dia combinado, simplesmente não apareça e não dê nenhum tipo de satisfação. Depois, ligue novamente e marque outra consulta. Confirme de novo. Desta vez, ligue apenas alguns minutos antes do horário da consulta (pois aí não dará tempo da secretária agendar alguém no seu lugar), dê uma desculpa esfarrapada para não poder comparecer e peça para remarcar para outro dia. Memorize o número do telefone da clínica. Quando a secretária ligar para confirmar, simplesmente não atenda, deixando um certo suspense no ar. Agora você já pode iniciar a fase dois: “chegando à recepção do consultório”.
A chegada sempre deve ser marcante. Você pode, por exemplo, chegar antes da hora da consulta e reclamar do atraso (mesmo se não houver atraso) ou chegue atrasado e exija ser atendido o mais rápido possível, pois você já está sendo aguardado no seu próximo compromisso. Irrite um pouco a secretária. Peça água, café, chá, capuccino, uma pizza, tudo que tem direito. Fale mal da decoração, da cor da pintura, da cor dos peixes do aquário, da situação econômica dos países do sudoeste africano, das revistas que estiverem à disposição. Estimule negativamente os outros pacientes, criticando os profissionais de saúde em geral e questionando a formação acadêmica do médico. Fale bem alto, para que o médico consiga ouvi-lo de dentro do seu consultório. Toda vez que o médico abrir a porta para chamar alguém, suspire bem alto quando este alguém não for você, pois assim ele vai se sentir pressionado. Quando ele te chamar, abaixe a cabeça e fale “graças a Deus” ou “finalmente” baixinho, mas de forma que todos escutem. Aproveite este momento para gastar mais um pouco de tempo. São várias as opções: você pode levar várias sacolas e demorar bastante até pegar todas elas, principalmente se uma delas rasgar. Fingir que tem algum problema de coluna e gastar alguns minutos se levantando da cadeira sempre é divertido. Fique atento ao modo como será recebido pelo médico. Se ele lhe estender a mão, não a aperte (espere o momento apropriado), apenas se finja de bobo. Se ele usar expressões do tipo “bom dia” ou “tudo bem”, diga que não tem nada de bom, pois se estivesse tudo bem você nem estaria ali. Ao entrar no consultório, peça para ir ao banheiro, gaste uns bons cinco minutos e, apesar de ter toalhas de papel no banheiro, não as use. Vai ser muito mais legal se você sair enxugando a mão na roupa e estendê-la ainda bastante molhada (esse é o momento apropriado para apertar a mão do doutor). Enrole o máximo possível antes de deixar o médico iniciar a consulta. Pergunte sobre o significado das pinturas na parede, elogie a presença ou ausência de plantas no ambiente, pergunte quem são as crianças nas fotos em cima da mesa, faça comentários sobre o último episódio da novela das sete. Faça críticas destrutivas sobre tudo relacionado com a clínica: critique a mensagem da secretária eletrônica, a localização do estabelecimento, o tempo de espera do elevador, a roupa e/ou os modos da secretária, o gosto da água do bebedouro, etc. Mas não precisa exagerar. Observe a cara de aflição do médico. Quando perceber que ele está quase tendo um ataque, pergunte se ele não vai começar logo a consulta, pois afinal de contas você não tem o dia inteiro. Geralmente o médico pergunta qual é o motivo principal da sua consulta. Neste momento você deve exclamar “Ih, doutor! O que eu mais tenho é problema!” A expressão “Ih, doutor” tem a capacidade de provocar calafrios até nos doutores mais experientes. Retire um bloco de anotações ou uma agenda e diga que você fez uma lista pra não esquecer de nada. Não se limite a apenas ler o que está escrito na sua lista. Aproveite o momento para descrever com riqueza de detalhes como e quando os sintomas surgiram, o impacto dos mesmos na sua relação com seu chefe e a situação sócio-político-cultural do país no períodoem questão. Abuse dos devaneios. Divague por alguns instantes. Mude de assunto quantas vezes puder. Ignore as perguntas do médico ou responda da maneira mais confusa possível. Não se importe de cair em contradição, afinal de contas isso é uma consulta e não um tribunal. Confesse que você já passou por diversos médicos e que nenhum deles soube resolver o seu problema, além do fato de que todos te atenderam de modo muito rápido e nem te examinaram direito. Complete dizendo que hoje em dia você fala mal deles para todos que você conhece, pois assim o médico atual vai ser mais atencioso para não ser mais um na sua lista negra. Diga que já tomou vários medicamentos por conta própria e por recomendação de familiares, vizinhos, balconistas de farmácia e atores da globo. Lembre-se de dizer o nome e o sobrenome de todos os envolvidos, para que o relato fique mais interessante. Após enumerar todos os seus vinte e oito problemas, invente mais uns três só por garantia. Rebusque ao máximo o seu português, principalmente com a utilização equivocada de termos e expressões médicas. Eles odeiam escutar os pacientes dizendo abobrinhas como “meu sistema é nervoso”, “minhas glândulas olfativas estão entupidas”, “tenho rinite no rim esquerdo”, “tenho acne porque comi chocolate e ele afetou minha glândula sebastiam”, entre outras. Quando questionado sobre os remédios que você toma, tire outra lista do bolso. Nesta altura da consulta, provavelmente você já terá reduzido em pelo menos nove anos a expectativa de vida do pobre médico. Lembre-se de dizer que você já teve reações alérgicas gravíssimas após o uso de vários medicamentos diferentes, mas diga que não se lembra do nome deles (dê a descrição do comprimido, se quiser: “é um pequeno e branquinho”). Não dê informações claras sobre a sua família, pois isso pode ajudar o médico. É melhor dizer que você não conheceu seus pais. Leve uma sacolinha de plástico cheia de exames antigos de outros médicos e faça questão de mostrar todos. Peça a opinião sobre exames que não são da especialidade do seu médico (os ortopedistas odeiam que lhes peçam para olhar eletrocardiogramas e os psiquiatras detestam biópsias do fígado). No momento do exame físico, abuse da catimba. Se te pedirem para tirar a camisa, diga que está com frio. Tirar a calça? Você alega estar com vergonha. Disseram que não precisa tirar a roupa? Dispa-se completamente com apenas um movimento rápido (aquela roupa de strip tease será muito útil neste momento). Use sempre o seu sapato mais chulezento e faça questão de tirá-lo. O médico é clínico? Peça para avaliar aquela cicatriz cirúrgica antiga. Oftalmologista? Peça para medir a sua pressão arterial. Cirurgião? Peça para olhar se tem um cisco no seu olho. Ele é ginecologista e você é homem? Então ele deve ser míope ou completamente cego (deite-se na mesa ginecológica e grite “surpresa” quando ele te tocar). Encerrado o exame, volte para sua cadeira e, quando o médico estiver quase se sentando, peça para ele olhar aquela pintinha que você tem na perna e que esqueceu de mostrar. Neste momento é importante que você se levante e volte para a mesa de exame, pois o médico se sentirá obrigado a te seguir. Você pode repetir esta técnica por mais umas duas vezes, sempre evitando que o médico se sente. Quando a veia da testa dele estiver quase estourando, você interrompe as manobras evasivas e permite a continuação da consulta. Este é o momento decisivo. O médico acha que vai fazer uma prescrição rápida e com uma letra bem garranchada e ficar livre de você. Mas ele está errado. Você não vai deixar que ele escape. Aproveite que ele está com papel e caneta nas mãos. Quando ele terminar a sua receita, peça para fazer uma declaração de comparecimento. Rasgue a declaração e peça para ele fazer um atestado de um dia, ou dois, ou peça logo para fazer um de 15 dias, pois você está muito estressado e não sabe se vai conseguir voltar para a empresa. Depois peça um relatório detalhado para levar ao INSS, pois você está doido para “encostar”. E não esqueça de pedir uma receita azul para a sua mãe. Os médicos em geral preferem cometer um harakiri a passar uma receita para alguém que eles não examinaram, ainda mais de um remédio controlado. E outra coisa que os médicos abominam são os acompanhantes. Os acompanhantes são muito importantes se você realmente quer entrar na lista de pessoas que o médico irá detestar pelo resto da existência. Traga consigo um ou mais acompanhantes. Pesquisas recentes indicam a quantidade ideal de acompanhantes: dois adultos ou cinco crianças. Se optar pelos pequeninos, traga filhos de outras pessoas, pois nesse caso será mais fácil justificar a falta de controle que você tem sobre eles. Dê preferência para aquelas crianças agitadas, catarrentas, que sofrem de oxiuríase e que nunca ouviram a palavra “não”. Finja que nem está vendo a bagunça que eles estão fazendo no consultório. Se o médico fizer cara ruim, faça negociações com as crianças (“se você ficar quietinho o doutor deixa você usar o carimbo dele para carimbar a parede” ou “o doutor vai te dar uma luva e deixar você levar pra casa o estetoscópio se você parar de limpar o nariz no jaleco dele”). No caso dos acompanhantes adultos, procure pessoas chatas (e/ou com gagueira) e que querem aproveitar o momento para fazer uma consultinha grátis. Estimule-os a fazer várias perguntas sobre informações médicas adquiridas em revistas de fofoca, novelas e internet. Melhor ainda se eles questionarem a conduta do médico, baseados naquele sonho que a vizinha teve ontem. Perguntem sobre os tratamentos miraculosos de Cuba, sobre as curas espirituais, sobre a auto-hemoterapia, sobre ervas, minerais, gnomos e unicórnios. Peça amostras grátis de medicamentos. Pergunte se os acompanhantes podem ir ao banheiro. Quando eles saírem do banheiro, fale daquela dor ou daquela hemorróida ou daquela flatulência que está te incomodando há dois minutos. Peça um encaminhamento para um outro especialista. Implore para que o médico peça exames de sangue, fezes, urina, radiografias, ressonâncias, punções, entre outras. Se o médico ainda não tiver saltado janela afora, prepare-se para deixar o recinto. Levante-se e caminhe lentamente até a porta. Antes que o médico abra a porta, pergunte sobre uma doença que você sabe que ele não terá como negar a resposta (exemplo: se ele é dermatologista, pergunte se ele também cuida de cabelos ou unhas). Agora você deve sair do consultório suspirando e dizendo “tomara que desta vez ele acerte”. Os pacientes que já estão irados por aguardar por mais de 80 minutos ficarão também desconfiados das habilidades do médico. E não esqueça de retornar em menos de 30 dias, pois você tem direito a um retorno totalmente gratuito, momento este que deverá ser utilizado para pedir ao médico outra receita (pois você perdeu a primeira), novos exames, novos relatórios, além de aproveitar para levar outros acompanhantes que, logicamente, também querem tirar uma casquinha do doutor. Finalmente, se você tiver tempo, leve anotado num pedaço de saco de pão o nome de alguns remédios que seus amigos usaram e que você acha que seriam bons para você também. E não se esqueça de encerrar com maestria: “Gostei muito do senhor, doutor. Vou voltar todos os meses.”
Autoria: O Chinelo da Minhoca
A chegada sempre deve ser marcante. Você pode, por exemplo, chegar antes da hora da consulta e reclamar do atraso (mesmo se não houver atraso) ou chegue atrasado e exija ser atendido o mais rápido possível, pois você já está sendo aguardado no seu próximo compromisso. Irrite um pouco a secretária. Peça água, café, chá, capuccino, uma pizza, tudo que tem direito. Fale mal da decoração, da cor da pintura, da cor dos peixes do aquário, da situação econômica dos países do sudoeste africano, das revistas que estiverem à disposição. Estimule negativamente os outros pacientes, criticando os profissionais de saúde em geral e questionando a formação acadêmica do médico. Fale bem alto, para que o médico consiga ouvi-lo de dentro do seu consultório. Toda vez que o médico abrir a porta para chamar alguém, suspire bem alto quando este alguém não for você, pois assim ele vai se sentir pressionado. Quando ele te chamar, abaixe a cabeça e fale “graças a Deus” ou “finalmente” baixinho, mas de forma que todos escutem. Aproveite este momento para gastar mais um pouco de tempo. São várias as opções: você pode levar várias sacolas e demorar bastante até pegar todas elas, principalmente se uma delas rasgar. Fingir que tem algum problema de coluna e gastar alguns minutos se levantando da cadeira sempre é divertido. Fique atento ao modo como será recebido pelo médico. Se ele lhe estender a mão, não a aperte (espere o momento apropriado), apenas se finja de bobo. Se ele usar expressões do tipo “bom dia” ou “tudo bem”, diga que não tem nada de bom, pois se estivesse tudo bem você nem estaria ali. Ao entrar no consultório, peça para ir ao banheiro, gaste uns bons cinco minutos e, apesar de ter toalhas de papel no banheiro, não as use. Vai ser muito mais legal se você sair enxugando a mão na roupa e estendê-la ainda bastante molhada (esse é o momento apropriado para apertar a mão do doutor). Enrole o máximo possível antes de deixar o médico iniciar a consulta. Pergunte sobre o significado das pinturas na parede, elogie a presença ou ausência de plantas no ambiente, pergunte quem são as crianças nas fotos em cima da mesa, faça comentários sobre o último episódio da novela das sete. Faça críticas destrutivas sobre tudo relacionado com a clínica: critique a mensagem da secretária eletrônica, a localização do estabelecimento, o tempo de espera do elevador, a roupa e/ou os modos da secretária, o gosto da água do bebedouro, etc. Mas não precisa exagerar. Observe a cara de aflição do médico. Quando perceber que ele está quase tendo um ataque, pergunte se ele não vai começar logo a consulta, pois afinal de contas você não tem o dia inteiro. Geralmente o médico pergunta qual é o motivo principal da sua consulta. Neste momento você deve exclamar “Ih, doutor! O que eu mais tenho é problema!” A expressão “Ih, doutor” tem a capacidade de provocar calafrios até nos doutores mais experientes. Retire um bloco de anotações ou uma agenda e diga que você fez uma lista pra não esquecer de nada. Não se limite a apenas ler o que está escrito na sua lista. Aproveite o momento para descrever com riqueza de detalhes como e quando os sintomas surgiram, o impacto dos mesmos na sua relação com seu chefe e a situação sócio-político-cultural do país no período
Autoria: O Chinelo da Minhoca
Maravilha, adorei, vou fazer isso na minha próxima consulta!
ResponderExcluirRealmente isso tudo é verdade . Quem escreveu isso sabe o que é ser médico nesse país ...!
ResponderExcluirMuito engraçado e verdadeiro!
ResponderExcluirIncrível, parabéns pela postagem. Texto tão bem escrito que acredito que o autor teve orgasmos mentais em cada sentença, em cada frase, em cada palavra. De tão bem escrito, acho que só tem orgasmos dessa maneira, sacaneando o médico. Digno de um psicopata de plantão que não tem mais o que fazer.
ResponderExcluirtodos os dias tem pelos menos 10 frases desta no consultorio de qquer medico.... muito bom .
ResponderExcluirÉ... Você é mau!!! Não ensine as pessoas a fazer isso!!! O pior é que tem paciente sem noção que faz tudo isso que está escrito E mais um pouco...
ResponderExcluirHumor requintado com uma pitadinha de crueldade!!! Haja estômago para tanta falta de noção!!! Meu sistema ficou nervoso, doutor, võcê não quer me pedir um elétrico???
ResponderExcluirConcordo com vc, Anna. O tal do elétrico também é dureza. Tem umas que são de doer. A "glândula sebastian" por exemplo foi uma das piores que já escutei. E haja força pra não rir no meio da consulta. Valeu pelo comentário!
ResponderExcluirÓtimo texto!Mas você se esqueceu de informar ao médico as novas doenças e medicamentos no mercado:Djeicondjex para gripe,Biscopon para cólica,Tailenol para febre de granfino,Dalsai para dor.As crianças tem muito Flux(refluxo),problemas no apênis(apêndice)há anos mas só hoje descobriram.Necessitam de atestado escolar, para o futebol,a natação,o inglês e atestado de saúde para a creche.Ah!E tudo isso no PS já que as aulas começam amanhã.E quando você abre a porta do consultório tem mais 15 fichas na sua porta.Esqueça a vontade de fazer xixi.Quem sabe após os 15 pacientes!
ResponderExcluirValeu pela contribuição. Djeicondjex eu não tinha escutado ainda. Muito boa!
ResponderExcluirO autor deve ser médico e atender ou plano de saúde ou SUS.Para mim o pior é pedir receita de droga controlada. É de chorar! De raiva!!!
ResponderExcluirRealmente sensacional os seus textos.. Parabéns!!
ResponderExcluirGustavo
Irritantemente verdadeiro !!! rsrsrs Aquela parte das receitas, atestados e comprovantes.. é quase uma rotina.
ResponderExcluirParabéns !!!
So espero que como as minhocas, esse ser veja a grama pela raiz o mais rapidamente possivel.
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