O chinelo da minhoca
Monique saiu lentamente da Jacuzzi. O sol estava quente, mas a brisa que
soprava do norte tornava o clima deveras agradável. Vestiu seu roupão azul
turquesa, colocou seus óculos Armani e calçou o chinelo direito com extrema
delicadeza. Ao tentar calçar o esquerdo, sentiu que pisava em algo macio. Olhou
para baixo.
Incrível como uma senhora de tamanha etiqueta, educada por lordes das
melhores escolas francesas, se converteu de repente na mais tresloucada e
escandalosa maluca. Como que tomada por um surto psicótico, correu e saltou
pelo jardim como se fosse um avestruz fugindo de um guepardo. Na verdade, mesmo se o avestruz tivesse uma
perna torta e a outra recém-operada do ligamento cruzado anterior do joelho,
ele não correria de modo tão estapafúrdio. E o responsável por tamanho escarcéu
era um minúsculo ser, que observava o desespero da mulher com um olhar de
triunfo. A pequena minhoca posava majestosa sobre o pé esquerdo do chinelo. Sua
mente maquiavélica se enchia de júbilo. Seu ego se regozijava diante de tamanha
conquista. Sentia orgulho por ter planejado e executado com precisão britânica
a primeira parte do plano...
Os animais não conseguiam acreditar. Os gafanhotos ficaram estupefatos
quando o cachorro lhes contou a notícia. Os coelhos desmaiaram ao ouvir da
coruja sobre o ocorrido. Duas moscas tentaram obter informações de uma aranha e
ela as comeu, após deixá-las estarrecidas com os acontecimentos. A cigarra
parou de cantar. As formigas pararam de trabalhar. E o feito correu mundo,
atravessou continentes e chegou aos ouvidos dos leões africanos.
– Eu não acredito! – gaguejou um deles.
– Ela realmente conseguiu! – disse o segundo.
– A cadeia de eventos teve início! – rugiu o líder do grupo – Preparem-se
e aguardem o sinal!
Então, subitamente, o mundo mudou. Podia-se sentir no ar que algo
estranho estava prestes a acontecer. Os animais estavam agitados. Arrulhos,
berros, sussurros, gorjeios, uivos, grasnados, grunhidos, rugidos, latidos,
miados, bramidos, relinchos, enfim, todo tipo de som podia ser percebido. As
pessoas se sentiam observadas, vigiadas. Olhos coloridos acompanhavam todos os
seus movimentos, e a relação de domínio já não era tão evidente como antes. As
bestas aguardavam silenciosas e traiçoeiras pelo início do levante. Era chegada
a hora da desforra. A hegemonia sobre o planeta mudaria mais uma vez de mãos. A
primeira das eras havia sido vencida pela apocalíptica bola de fogo que cortou
os céus e sepultou os répteis gigantes. Em seguida, grande parte do planeta foi
enterrada sob grossas camadas de gelo. E agora todo o peso da responsabilidade
pairava sobre os ombros de uma criatura sem ombros. A minhoca carregava o fardo
de se tornar o arauto de uma nova realidade...
O pequeno anelídeo havia enrolado seu corpo na tira de borracha do
chinelo e se esforçava para rastejar até o arbusto mais próximo. Ela sabia que
seu feito seria lembrado por décadas, talvez séculos, milênios. Já imaginava a
surpresa estampada no rosto de seus familiares. Aquele ato iria finalmente
provar a todos o seu valor. Seria promovida a general, e cânticos gloriosos
garantiriam a imortalidade de seu nome. Seria cultuada, idolatrada. Um exemplo
a ser seguido.
Enquanto a minhoca se contorcia, palavras de ordem eram pronunciadas na
penumbra. Dentes e garras eram cuidadosamente amolados para o embate.
Estratégias impiedosas eram friamente arquitetadas e enviadas para os
principais centros de comando. Um amanhecer sangrento era planejado nos mais
ínfimos detalhes. Nada poderia impedir a avalanche que se aproximava.
Ela sabia que conseguiria. Precisava reunir todas as suas forças e
rastejar mais alguns centímetros. Atrás do arbusto, uma escolta de formigas e
vespas, fortemente armadas, esperava pela chegada da minhoca. Um plano havia
sido elaborado para transportar o chinelo até o ponto de encontro, no coração
da cordilheira dos Andes, onde os líderes das classes aguardavam ansiosos. E o
grandioso sinal finalmente seria dado. E ele se espalharia pelos quatro cantos
do mundo, como os ventos da mudança. Apenas cinco centímetros e o destino da
humanidade sofreria o mais inesperado revés.
Súbito, Monique reapareceu no jardim. Desta vez, ela estava acompanhada
por seu namorado, o valente Harold. A mulher apontou para o chinelo e soltou um
gritinho histérico: – É um bicho horrível!
A minhoca relevou a ofensa. – Deixe estar! – pensou – Quando a nova ordem
mundial tiver se instalado, você será a primeira a queimar!
O homem começou a se aproximar. A minhoca, percebendo o perigo, acelerou
mais ainda o seu rastejar, colocando os seus vários pares de corações a todo o
vapor. Faltava muito pouco. Ela estava quase conseguindo. Já podia até ouvir
seu nome sendo saudado em sua cerimônia de condecoração. Conseguiu ver as
formigas por entre a folhagem. Um grupo de baratas pensou em sair do arbusto e
ajudá-la, mas a imagem de um chinelo se aproximando era assustadora demais até
para a mais corajosa delas. Todos os grupos que poderiam ter feito a diferença
hesitaram. E o pior aconteceu. Harold esticou sua enorme mão e interceptou o chinelo.
E a valorosa minhoca era agora refém do inimigo. O reino animal havia sido
batido novamente...
O que ocorreu após sua captura foi brutal até para os olhos das mais
sanguinárias feras. Sem qualquer possibilidade de defesa ou julgamento justo, a
heroína foi condenada ao mais cruel dos castigos. Sua audácia seria punida de
maneira exemplar, para desestimular maquinações futuras. A minhoca foi
covardemente mutilada em vários pedaços e empalada por pequenas lanças curvadas
e pontiagudas, para em seguida ser atirada aos peixes de um enorme lago.
A noite que se seguiu seria lembrada como a mais melancólica de todos os
tempos. A escuridão era silenciosa e triste. Uivos e lamentos ecoavam soturnos
pela madrugada. Alguns diriam mais tarde que talvez aquele não teria sido o
momento certo. Outros chegariam a argumentar que uma centopéia seria o agente
mais indicado para o serviço. Mas no final todos se lembrariam daquela corajosa
minhoca, que por alguns instantes encheu os ares com o doce perfume da revolução.
Autoria: O chinelo da minhoca
Autoria do desenho: O chinelo da minhoca
Autoria: O chinelo da minhoca
Autoria do desenho: O chinelo da minhoca
Nota do autor:
- Historinha da minhoca: repleta de magia, animais falantes, suspense, reviravoltas e mortes macabras, ou seja, um conto de fadas ideal para ler para as crianças...
Nota do autor II:
- Não achou adequada para crianças? Então vai me dizer que um lobo devorando uma vovó, um garoto cortando a mão de um pirata, bruxas sendo queimadas no forno, animais sendo covardemente assassinados (ainda acordo à noite ouvindo o tiro que matou a mãe do Bambi), entre outras barbáries, é adequado para os seus filhos? É hora de rever os seus conceitos...
- Não achou adequada para crianças? Então vai me dizer que um lobo devorando uma vovó, um garoto cortando a mão de um pirata, bruxas sendo queimadas no forno, animais sendo covardemente assassinados (ainda acordo à noite ouvindo o tiro que matou a mãe do Bambi), entre outras barbáries, é adequado para os seus filhos? É hora de rever os seus conceitos...
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